Como é fácil flagelar os emigrantes quando passeiam a pesporrência de uma certa abundância material, quando entoam hinos à anti-estética, quando armadilham a língua que aprenderam mal com as granadas detonadas pela habituação à língua que tiveram que aprender. Ainda que se ponham a jeito para a chacota indígena, há uma homenagem que se impõe pela coragem de ir para uma terra desconhecida, muitas vezes tão distante, para sonegar as provações que foi tudo o que a terra-mãe lhes deu a conhecer. Uma coragem ao alcance de poucos.
Os que se enamoram pelo género epopeico encontram na safra dos emigrantes analogia com a veia aventureira dos descobridores quinhentistas. Que descabida comparação. As circunstâncias que empurram pessoas para tratar da vida no estrangeiro são tão diferentes do que levou uma gesta de navegadores a sulcar águas desconhecidas, que a analogia morre à nascença. A emigração vem fermentada por um estado de necessidade. Tirando os que buscam exílio por desamor da pátria, a procura de oportunidades no estrangeiro tem um lastro de carências vividas na terra que viu nascer os que depois emalaram os parcos pertences para fazerem vida num distante local.
Logo aqui o primeiro sinal de coragem: a insatisfação com a miséria convidava os emigrantes a demandarem o desconhecido bem-estar numa terra que era estranha. A aventura ficou mais fácil para aqueles que não foram às escuras, os que partiram para um destino já arrepiado por patrícios seus. Estes é que são merecedores dos louvores. Gente sem instrução, que amiúde nunca saíra das ameias da perdida terra onde nascera, gente sem saber línguas, gente sem conhecimento da geografia para saber onde se ia instalar. E mesmo assim não hesitaram em partir, embebidos na total incógnita da tarefa. Partiam para serem mão-de-obra à mercê de árduas empresas, duras condições que não aceitariam na terra-mãe. Quando chegavam ao inverno, expostos a uma invernia que nem julgavam ser possível. Sem nunca dobrarem, mais alto o imperativo de amealhar pecúlio que fosse a caução para o outrora apenas mirífico bem-estar.
Éramos terra de emigrantes. Agora já o não somos tanto, ou por termos singrado na ladeira do bem-estar, ou porque as gerações que vieram depois trouxeram têmpera diferente, menos atreitas a avançar às cegas no desconhecido. Até já somos terra escolhida por imigrantes, sinal de que a terapêutica miséria salazarista foi declinada por gente amante de mundanos e menos mundanos prazeres materiais.
Regresso ao tempo lá atrás, o da miséria indigna. Era quando os que andavam pela miséria sentiam ser inevitável perguntar pela sorte noutro local. Esta era uma terra ingrata com os seus. Era como se esta terra deixasse à míngua gente que nunca marcou encontro com um destino de fortuna e a empurrasse para distantes migrações. Uma espécie de purga. Dos proscritos. A ingratidão a gotejar, ainda mais soez, quando a terra que os purgara estendia a mão na ânsia das remessas. Era a doce vingança dos que emigraram. Outrora expulsos pela miséria da terra-mãe, a melhor bofetada na ingratidão era serem financiadores da riqueza nativa.
Sobra a sensível questão da identidade. Há dias, uma emigrante em Londres confessava, com mágoa, que se sente estrangeira em Londres e também quando regressa à terra – ou que, deixou-o nas entrelinhas, não sente que os nativos a tratem como alguém que é tão nativa quanto eles. A crer nos padrões estabelecidos, as raízes devem ser conservadas. A crer nestes padrões, os que invocam a cidadania do mundo estão à frente do seu tempo.
Os emigrantes padecem de uma segunda doença quando lhes ecoam os acordes do moderno cosmopolitismo. É o preço derradeiro da aventura da emigração: desenraizados, sem saberem pertencer a uma terra que seja.
Sem comentários:
Enviar um comentário