Barões, duques e viscondes. Ufanos, passeiam a sua estirpe. Lá de cima, onde a altivez os deixa a olhar os que vegetam cá por baixo, a ralé indiferenciada. Os barões, duques e viscondes de agora ainda respiram o ar ancestral dos seus antepassados. É como se o mundo nunca tivesse mudado. Os barões, duques e viscondes cristalizam as coisas na sua inércia. Emblemas maiores do que é anacrónico.
Há-os por todo o lado. O garbo, ostentam-no nos sítios onde a monarquia persiste. É aí o seu habitat natural. Onde conseguem arregimentar um numeroso exército de seguidores, mesmo entre o povo anónimo que não percebe a vassalagem que é convidado a prestar. Como se ainda fosse obrigatório ajoelhar-se à passagem das excelências que os vergam à sua insignificância perante os nobiliárquicos títulos que envergam. O baronato de farpela chique desliza num cenário com pós de perlimpimpim que anestesiam a turba, enfeitiçada pelo vago odor de conto de fadas em que barões e baronesas, duques e duquesas, viscondes e viscondessas tremeluzem. Dir-se-ia, um microcosmo muito particular, um mundo faz-de-conta, pontuado pela presença de barões, duques e viscondes que possuem sempre um "je ne sais quoi pas" que os distingue da turba restante.
Como é bela a nobreza. E como é execrável a nobreza. Aos vê-los, onde teima a monarquia e nas repúblicas onde uns vagabundos que se fazem passar por nobres aspiram ao sonho de depor a república e habilitar o regresso à monarquia, ao vê-los na prosápia da presumida superioridade herdada pelos imbeliscáveis pergaminhos, uma indomável pulsão de alistamento numa esquerda qualquer. Não é que seja devoto da falaz igualdade pregada por pitonisas de esquerdas, ainda tributárias do derreado ideal da revolução francesa quando deificam a igualdade e deixam para segundas núpcias a liberdade. Não somos iguais. Pior é a entorse contemporânea do princípio, que faz de uns mais iguais que os outros. Os barões, duques e viscondes insistem em ser mais iguais do que os demais. Invocam um qualquer preceito divino, ou agarram-se à tábua de salvação do direito natural – o espantoso argumento do "porque sim" –, para afirmarem os privilégios de casta que chamam a si.
Pois é de uma casta que se fala quando a nobreza vaidosa desfila lá do alto do pedestal onde os demais têm acesso vedado. Há quem condescenda, arreigadas as convicções do tradicionalismo. São os que admitem a existência de barões, duques e viscondes porque reproduzem um costume antigo, e os costumes antigos não devem ser aniquilados. É este conservadorismo que nos condena ao ostracismo da mediocridade. Não passamos da cepa torta enquanto formos coniventes com esta forma de pensar. Todavia, não há a sugestão de proibir, à força de decreto, barões, duques e viscondes de o serem. É terapêutico vê-los passar no palco das vaidades inanes. Provoca um efeito circense.
Mudança de melodia. Ontem, pela primeira vez, pomposo anúncio televisivo das comemorações do centenário da república. Pela memória desfilam os vultos, eminentes vultos, que emprestam distinta presença aos festejos dos cem anos de república. Descontando a parafernália de usos e vocabulário, custa distinguir nobres que ostentam a linhagem das famílias brasonadas destes senadores que caucionam o bom nome da república. São, à sua maneira, barões, duques e viscondes. Talvez ainda de pior estirpe: na sua boca e no seu pensamento, o valor da igualdade é um esteio e, no entanto, não evitam uma pesporrência que os coloca num altar a que só pertencem os que se julgam mais iguais que os demais.
Longa vida aos barões, duques e viscondes – os adoradores de monarquias que já deviam ter perdido o rasto ao tempo, e dos outros que transformaram as cansativas repúblicas numa deificada coisa, afinal tão próxima das monarquias e das linhagens superiores que diziam combater. Longa vida, que barões, duques e viscondes destas igualhas fazem falta para o hábito da sátira não cair em desuso.
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