Uma rapariga italiana em estado vegetativo há dezassete anos. Sem esperança de recuperar para uma vida decente. A família já tinha sido desenganada pelos médicos. O pai queria desligá-la da vida artificial em que era mantida. "Eutanásia", protestaram os do costume, muito ofendidos pela aleivosia que choca os seus quadros mentais. À frente dos protestos, a igreja católica empunhando as bandeiras gastas com o tempo. "Assassínio", sentenciaram do alto das certezas de quem teima em ser intruso em vida alheia. Montou-se uma campanha para impedir que a rapariga fosse desligada da máquina que a mantinha teimosamente ligada a uma vida absurda, uma vida indigna.
Nisto de causas, não é só a extrema-esquerda que as tem e nelas apascenta como devota militância. A direita conservadora, a direita parola de Berlusconi, a direita que tresanda ao bafio das sacristias, quis ser capataz das ordenações do Vaticano. O inenarrável Berlusconi tirou da cartola uma absurda invenção: uma lei feita à medida para impedir que a rapariga fosse desligada da máquina. Logo ali, em Roma, onde nasceu o direito moderno, um primeiro-ministro desorientado a invectivar um alicerce do Estado de direito: a lei é geral e abstracta, ou não é verdade que Themis, a deusa da justiça, é cega?
O que há-de pensar alguém de direita acerca desta direita conservadoramente católica até aos ossos, a tresandar ao bafio das sacristias sombrias onde se repisam os dogmas bíblicos que ensinam a intrometer na vida alheia? Não fosse a repugnância congénita a tudo que ressoe a esquerdas e diria, nestas alturas, que me apetecia alugar espaço numa esquerda qualquer. Esta direita labrega e iliberal cede perante os dogmas da igreja católica, como se a igreja fosse a eminência parda que lhe manipula os gestos e a vontade. Não respeita a vontade individual, que se inclina diante dos imperativos da metafísica. Olhando à lupa, que diferença existe entre esta direita amordaçada pelo conservadorismo católico e a ortodoxia comunista? Num caso como noutro, sufocação da vontade individual. Só diferem os altares onde se ajoelham respeitosamente.
A certa altura, o pai lembrava a filha como uma amante da liberdade. E ensinava aos que se empenharam em perpetuar a indigna vida da rapariga que a vida é um acto de liberdade. Nem vem ao caso indagar se o homem estava a ser instrumentalizado pelos opositores da igreja, pois a uma militância contrapunha-se militância de sinal contrário. O que mais lamento é as duas militâncias terem aproveitado o sofrimento de uma família para fazerem política. A abjecta política a emergir nestas alturas. Nem interessa saber se o pai contava a verdade quando evocava a filha como amante da vida como acto de liberdade. O que aqui conta é que a vida é mesmo um acto de liberdade. E viver daquela maneira é tudo menos ser livre. É estar preso a uma máquina, a vida mantida por cordelinhos na artificialidade da parafernália de mecanismos que suportavam o estado comatoso em que a rapariga era mantida há dezassete anos.
Já o disse por mais que uma vez: isto não é viver com dignidade. Se a igreja, teimosa, insiste que só deus é que pode tirar a vida às pessoas, faço as seguintes perguntas: não dizem que deus é imensamente bondoso? Como conciliam essa bondade com a crueldade que é manter uma vida vegetativa? Talvez tenham dificuldade em responder à interrogação. Aprenderam, na catequese, a respeitar todas as decisões divinas sem interrogar a sua justeza. Nem que isso exija declinar a individual liberdade que nos foi outorgada.
Tenho uma imensa dificuldade em perceber como pode alguém, em desespero de causa, levar às últimas consequências a tentativa de proibição de um acto de eutanásia. Ao menos respeite-se a vontade da família, o seu prolongado sofrimento. Aos que não o conseguem fazer, uma advertência: a qualquer altura, os outros, os que são da mesma igualha, podem dar palpites sobre a sua própria vida. O que não será agradável.
Eluana, enfim, partiu. Enfim, consumou-se a sua suprema liberdade. Desligada da máquina, desligada das algemas que a mantinham presa a uma vida artificial que contrariava a vida como acto de liberdade.
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