17.2.09

Os lambe botas


A quintessência da mediocridade. Lambem botas porque se as não lambessem da cepa torta não saíam. Vasculham as catedrais por onde os figurões se fazem notar, cheios de poder. Farejam os lugares onde posam suas excelências, só para lhes lamber as botas, lamber o chão onde essas botas hão-de pisar, se necessário for. A certa altura, desaprendem a dignidade.


São os meirinhos de uma fastidiosa maneira de ser, desmultiplicando-se em genuflexões que apascentam a estatura dos elogiados. São os engenheiros do culto de personalidade dos figurões, dos que adoram ver-se embrulhados nos tratos de polé dispensados pelo numeroso séquito que lhe lambe as botas. Eles agora levitam numa sublime padiola onde não lhes é dado a saborear o amargo travo do cansaço, reservado aos lacaios que os reverenciam. Os agora poderosos entregues ao seu próprio culto de personalidade. Foram, em tempos, soldados de exército numeroso que lambera as botas a um qualquer general. Agora chegara a sua vez de ver lambidas as botas.


A suprema hipocrisia é todos saberem, lambe botas e personalidades cultivadas, que vivem imersos num tremendo oportunismo. Os figurões precisam de uma turba que varre o caminho por onde hão-de seguir, o caminho imaculado, despejado de inconvenientes adversários que possam contestar a sua grandeza. O culto da personalidade, ingrediente indeclinável da ostentação de poder. Só para obnubilar o banho de mediocridade que é seu leito irremissível. Os outros, a ralé que aspira a deixar de o ser, abraçados ao imperativo da procissão onde os esboços divinos são adorados. Sabem que é o percurso inevitável para irromperem na hierarquia, subirem os escalões todos, a pulso, até ser a sua vez de conquistarem um séquito que os vanglorie. Nas botas lambidas, apenas um esgar de oportunismo.


Infaustos os que se entregam ao banho dos lambe botas. Convencidos a confundir humildade com a ausente dignidade de quem se enche de contentamento, ou finge que o faz, a cada bota lambida dos poderosos. Que, por sua vez, se extasiam com o séquito a esgadanhar-se para polir zelosamente as suas botifarras. Coitados, os lambe botas: nem sabem que a qualquer momento as mesmas botas que lambem são as botas que não hesitam em pontapeá-los no rabo. Acontece a quem tanto se rebaixa, a jeito para o pontapé no rabo. Às vezes, sinal de que já nem sequer serem lambe botas os safa da demissão da função. Lambe botas em vão. Outras vezes, a distribuição de pontapés é a paga pelo zeloso polimento das botas. Dir-se-ia que as botas são lambidas para a distribuição dos pontapés. Ao menos, dos pontapés que são dados por botas zelosamente lambidas.


Há prebendas para repartir, haverá botas por lamber. Poucas botas, muitas línguas ávidas da função. Em tudo isto, o zénite da suprema mediocridade. Vingam os que se esmeram no melhor polimento das botas dos figurões deleitados na poltrona à espera de avaliarem o melhor lambe botas. Por sinal, os figurões trazem sempre as botas em exemplar polimento. Só disso se podem gabar, do garbo das botas em perene lustro. Que o resto é um mostruário da mesquinhez que é sua têmpera, o insuportável odor onde medram os tacanhos. Assim como assim, os agora poderosos tiveram o seu pessoal tirocínio de lambe botas. Interrogam-se: se outrora lhes fora dado lamber botas a quem o deviam fazer, agora que guardam em suas mãos uma apreciável fatia do poder perpetuam o costume.


O mal é esse: lamber as botas entrou para o património genético. Quem não vinga, os que ficam irremediavelmente perdidos no meio do deserto, são os que recusam lamber bota alguma. Sobra-lhes dignidade, um bem intangível. Nestes tempos em que os fins se sobrepõem aos meios, essa intangibilidade é o freio das oportunidades que se perdem, ou das oportunidades que, por decência, nunca chegam a sê-lo.


Mas quem triunfa no campeonato da mediocridade e da indecência são os que adoram apascentar um rebanho de lambe botas. A execrável imagem de os ver embevecidos com o pessoal séquito sempre disposto a lamber as botas e o chão que elas vão pisar. Pior que um lambe botas, só um figurão que se envaidece ao ver as botas polidas, sabendo que são sempre os outros que tratam de as lamber.

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