Em vésperas de carnaval, um boneco do corso de Torres Vedras esteve para ser censurado pela justiça por alegações de pornografia. Parodiava o computador portátil Magalhães, reproduzindo imagens de mulheres nuas. Há um par de dias, a PSP de Braga apreendeu um livro. A capa retratava o famoso quadro "A origem do mundo" de Gustave Courbet – um grande plano de uma vagina. A polícia decidiu actuar preventivamente. Disse o porta-voz de serviço, para evitar a perturbação da ordem pública.
Há males que vêm por bem. Logo a seguir levantou-se tamanho pé-de-vento contra a actividade censória que depressa os censores recuaram nas suas intenções. É lamentável que haja quem se ofenda com tão pouco, os bons costumes embrulhados numa moralidade que exala uma dor pestilenta quando um corpo aparece despido. O pé-de-vento teve o condão de mostrar que afinal há um activismo cívico provando que esta não é uma sociedade adormecida. Ao menos isso.
Valha a verdade, em Torres Vedras a história foi mal contada. Houve quem logo tecesse as pontas entre a censura ditada pela zelosa e possivelmente ingénua delegada do ministério público e um governo que se desmultiplica em provas de intolerância quando toca a conviver com a crítica. Houve quem visse no acto uma interferência do poder político no poder judicial. Era o que mais faltava, nestes tempos em que o ministro da propaganda, o ideólogo do regime, se gaba de "malhar na direita" como sua vocação lúdica, estes tempos de ditadura democrática alimentada por gente que confunde maioria absoluta com autoritarismo, vermos como um esteio do Estado de direito (a separação de poderes) estava a ser hipotecado.
Manda a honestidade intelectual que não se façam acusações infundadas. Desta vez, o governo intolerante não exerceu a sua contumaz intolerância. O motejo ao sagrado Magalhães não foi o pretexto para a intromissão do ministro da propaganda na justiça. Tudo partiu da denúncia de um ofendido cidadão, arrepiado ao ver imagens de mulheres nuas no boneco que satirizava o Magalhães. Para compor o ramalhete, uma ingénua delegada do ministério público confundiu imagens do corpo feminino desnudado com pornografia. Fez lembrar, aqui há anos, um bispo de Braga que confessou, tão ingenuamente como a magistrada de Torres Vedras, que tinha aprendido mais com o filme "O império dos sentidos" de Akira Kurosawa do que no resto da sua já então longa vida. Pudera!
(De regresso à denúncia do cidadão de Torres Vedras, sempre se podia especular: seria militante do PS? Estaria o serviço encomendado pelo ministro da propaganda, por certo abespinhado por alguém ousar fazer sátira com essa maravilha do regime, o Magalhães?)
Em Braga (helás!), a polícia de segurança pública (aprece por extenso intencionalmente) foi a uma livraria apreender um livro só porque a capa mostrava uma vagina em grande plano. Soube-se mais tarde, a PSP actuou depois de ter recebido uma queixa de uma associação qualquer de pais. A dita associação receava que os petizes estacionassem na livraria, diante do livro em causa, excitados por verem aquilo que nunca terão visto na vida. Das duas, uma: ou os pressurosos progenitores acreditam que os petizes nunca viram uma vagina nua e temiam que as hormonas em estado febril prendessem os filhinhos à livraria num cortejo de tristes figuras (ainda por cima estavam de férias escolares), ou desconhecem que a criançada tem acesso a coisas muito mais pornográficas na Internet (já ouviram falar, da Internet?). Há a terceira hipótese: que os paizinhos da bendita associação acreditem mesmo que o quadro de Courbel seja pornografia.
Do conservadorismo anacrónico não nos livramos. O conservadorismo que exala uma mesquinhez mental, que faz desta terra uma terra muito pequenina. Os costumes tomados pelo catolicismo empedernido fazem o resto. É gente que tem problemas com corpos nus. Gente que acredita na fábula de Adão e Eva por efeito da maça maldosamente oferecida pela serpente – é uma fábula, não é? Desconfio que quem tem tantos problemas com imagens de corpos nus vive aprisionado numa tara qualquer. O que é preciso, para nos libertarmos do espartilho dos quadros mentais amordaçados pelos costumes vigiados por padres, bispos, arcebispos e acólitos, é de muita pornografia. Pornografia a sério, não inocentes imagens de corpos nus que só trazem "maus pensamentos" (pedindo emprestada a retórica dos padres que patrulham os costumes) a quem está doente da cabeça.
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