10.11.06

O meu Porto: mais das coisas que das pessoas


A identificação pela cidade natal remete para o império dos afectos. Há uma dimensão inexplicável, quase mítica, uma atracção simbólica que nos faz perder de amores pela cidade onde nascemos. Pode não ser o local mais belo do mundo; pode nem ser, sequer, uma cidade a tecer loas à estética; é, contudo, o local que nos viu nascer, ou a cidade onde vivemos a maior parte da existência. Perfuma-se a cidade com as pétalas de um narcisismo insondável, que eleva a cidade ao altar do sagrado.

Podemos elogiar a nossa cidade pelas pessoas e pelas coisas. Os cultores do Porto têm escrito páginas e páginas exaltando o espírito das gentes portuenses. Muitas vezes apressados em desvendar a idiossincrasia de um colectivo irmanado pela cidade que os abriga, não dão conta que alguns desses traços não são exclusivos dos portuenses. Nem sequer percebem que há nos residentes de outras cidades, em doses variáveis, o mesmo orgulho pela pertença comum, até aquelas mesmas características apresentadas como exclusivas dos portuenses. É a compulsiva tendência para sublimar a pertença a um grupo, enaltecendo as características que se dizem comuns a essa pertença, mas exclusivas dela. Não passam, as mais das vezes, de uma mistificação. Um espartilho que apouca a individualidade de cada um.

Sinto-me, em relação ao Porto, dividido. Adoro a cidade quando vejo nela uma sucessão de locais com traços distintos. Não me revejo no espírito portuense cantado à exaustão por escritores que se inebriam pelas gentes, mesmo quando alguns desses traços revelam mesquinhez, tacanhez, uma tonta fobia identitária, como se ser portuense fosse um desígnio divino. E depois há os sinais de pertença que emergem da espúria rivalidade com a centralista Lisboa. Há nestes portuenses uma inveja latente por Lisboa ser a capital e desdenhar o resto do país. Um provincianismo indisfarçável, caindo no engodo dos umbiguistas lisbonenses que cultivam a ideia que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.

Por mais que denunciem o espírito centralista de Lisboa, a rivalidade acalenta muitos portuenses. Nota-se a afirmação de um sentimento de pertença pela negativa. Por mais que escritores inebriados pelas gentes do Porto tenham descrito à exaustão a têmpera tão própria dos portuenses, o que sinto é uma deturpação contemporânea. Ou os escritores viam através de uma lente desfocada, ou o tempo se encarregou de transformar a pertença portuense, moldando-a ao império do antagonismo com os rivais lisboetas. As mais das vezes, este é o cimento dos portuenses. Que assim se transformam em portistas: partilham um profundo ódio por Lisboa. Não é nestas gentes que me revejo portuense. Não é neste tribalismo primário que me identifico.

Mais do que as gentes, é nas coisas que ressalta o afecto que me prende à cidade. As cores sombrias de uma cidade plúmbea, mais carregadas quando o espesso nevoeiro veste a cidade. As pedregosas colinas que se despenham, abruptas, no rio selvagem que se vem deitar, em tumultuosas ondas, na embocadura do Atlântico. O casario amontoado da cidade velha, um postal colorido que de tanto ser publicitado como cartaz turístico começa a enfastiar. E, mesmo assim, quem consegue ficar indiferente ao caos ordenado que se contempla desde o cais de Gaia, uma paleta que se espraia para servir de inspiração a pintores e poetas?

Não digo que o Porto tenha uma magia que não se encontra algures. É a magia que tem cada cidade, os traços de individualidade que distinguem as cidades que preenchem o nosso imaginário. Não há duas cidades iguais. Nisso, o Porto pode reclamar exclusividade – como qualquer outro local do mundo. Fará sentido que apeteça regressar às profundezas do Porto. Acontece quando o viajante erra pelas quatro partidas do mundo e se deixa corroer pelas saudades do Porto natal. Até fará sentido quando, refugiado nas muralhas da residência, ou sufocado pelos afazeres que consomem todo o tempo, emerge um súbito apelo para mergulhar nas pedras centenárias da cidade velha, deambular pelas ruas estreitas da Ribeira, sentir o odor do Douro na sua caminhada imparável para o mar acolhedor.

Dirão alguns: mas a cidade foi edificada por sucessivas gerações de portuenses. E quem a celebra estará a elogiar a têmpera das gentes que ao longo do tempo foram fazendo cidade na sua feição corpórea. Os antepassados não posso ajuizar. E se afirmo que a pertença é mais pelas coisas do que pelas pessoas, não renego o espírito portuense passado, retratado por escritores, sem interessar se é fidedigno ou só uma mistificação colectiva. Apenas que não é com os portuenses contemporâneos, com a sua forma de sublinharem a pertença portuense, que me revejo. Só pela magia da cidade na sua materialização corpórea.

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