Há dias alguém manifestava incómodo por ter visto uma conferência de imprensa protagonizada por três polícias encapuzados. Já não me recordo quem estava indignado com a pretensa falta de coragem dos agentes da autoridade que se decidiram esconder detrás de um hipócrita anonimato.
Olhando ao passado, não vejo como se pode acusar os polícias. Os patrocinadores dos consensos, da propalada "normalidade democrática", do centrão político responsável pelo adormecimento social em que vivemos mergulhados - esses teimam em negar aos polícias e militares o acesso à sindicalização. Dirão: como forças da autoridade não podem ter o direito de manifestação sindical, sob pena de hipotecar a segurança do país. Este argumento não me convence. Invocar a segurança nacional é pretexto que sanciona uma discriminação. Se aos demais é garantido o direito de sindicalização, e se entre os demais há amiúde exibições de irresponsável grevismo que paralisam o país, menos se entende porque polícias e militares são remetidos para a condição de cidadãos de segunda. Ou todos têm o direito à greve, ou a ninguém deve este direito ser garantido. Abrir excepções é indigno de uma democracia que se preze.
Volto à célebre e insólita conferência de imprensa dada por três polícias envergando negros capuzes. Hipocrisia? Só se tivermos memória curta. Só se não recordarmos a perseguição deste formidável governo a alguns dirigentes de um movimento proto-sindical da polícia. O episódio merece ser lembrado. Para se entender o receio exibido pelos polícias, para não terem que suportar as retaliações exercidas no passado. E para provar como este governo é só imagem e nada mais do que imagem, estando a sua verdadeira essência escondida atrás do biombo imagético - intolerância e arrogância indisfarçáveis.
Há meses soube-se que dois dirigentes da associação sindical da PSP foram colocados na prateleira, pela via da reforma compulsiva. De acordo com as notícias, não lhes foram dadas justificações para a súbita reforma que não tinham solicitado. As pontas do novelo começaram-se a juntar. Meses antes, esses dirigentes tinham cometido o imperdoável pecado de tecer afirmações jocosas para o senhor primeiro-ministro e o senhor ministro da administração interna. Um deles teve a imprudência de usar o humor: fez um trocadilho qualquer com as férias do senhor primeiro-ministro no Quénia.
Pagaram a ousadia e o cinismo com a reforma compulsiva. Porque o respeitinho é bonito, e com suas excelências não se pode bulir. Por mais arejada que seja a imagem que nos pespegam a toda a hora - um primeiro-ministro jovem, bem disposto, fresco, muito fresco, uma pedrada no charco do cinzentismo político - com coisas sérias não se brinca. Há que exercer a autoridade de quem manda, porque a autoridade é incompatível com atropelos que a maculem, sobretudo se esses atropelos partirem de quem tem responsabilidade na manutenção da autoridade pública. Estala o verniz da bonomia, das ideias arejadas, da frescura juvenil soprada com insistência desde que este governo assentou no poder. Estalado o verniz, fica à mostra a verdadeira essência de quem nos governa. Gente rancorosa, intolerante, autoritária, de uma arrogância cansativa. Não sei se exagero se disser que são nazis disfarçados, mas é o que sinto. Mestres na vingança torpe.
Pode-se contestar os polícias encapuzados pelo espectáculo gratuito que ofereceram. Pode-se até argumentar que havia ali algum exagero cénico, sabendo que a populaça gosta de coisas esquisitas - e ver uma conferência de imprensa dada por três agentes da autoridade embuçados seria tudo menos normal. Mas, lá diz o povo, "quem anda à chuva molha-se". Chamuscados pela experiência do passado, sabedores do ausente poder de encaixe da gentinha pequenina que nos governa, percebo o folclore dos polícias embuçados e tolero os capuzes.
Sinal de que somos uma democracia constrangida. Com uma lição para o futuro: não se pode brincar com a imagem dos senhores ministros, crime de lesa-majestade. Para azar dos polícias, estavam mesmo à mão para o exercício do poder hierárquico. Não sei o que será mais covarde: se três polícias de capuz numa conferência de imprensa, se as ordens que desceram pelos canais hierárquicos destinando a reforma compulsiva aos dirigentes sindicais que ousaram exercer cinismo sobre governantes. Apenas uma democracia de costumes, uma fachada. E mais: governantes à imagem do povo, um povo sisudo, muito sério, que põe ameaçadoras carrancas quando alguém desafia a normalidade e parodia coisas sérias.
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