22.11.06

Da valentia


A marcha inelutável dos varões instruídos na valentia. Remam sempre em frente. Não interessa se encontram águas mansas ou promontórios impossíveis de derrotar. A bravura flúi no sangue. Ostentam-na com garbo. E zurzem dos fracos de espírito que se acovardam quando a primeira contrariedade espreita. Há homens de primeira linhagem, os corajosos que entregam o peito às balas se preciso for. E os outros, que parecem cães amedrontados com a cauda entre as pernas, bulindo piedosamente por um caminho sem espinhos.

Os valentes espíritos anseiam por bravata. As mais das vezes, são australianas almas que se perdem de amores por uma pancadaria caótica. Batem primeiro, porque raras vezes conseguem articular duas frases que sejam inteligíveis. Não será mistério a relação causal: os bravos do pelotão exibem escassas faculdades mentais. A valentia, sinal da inteligência ausente.

Haverá graduações diferentes de coragem. Há os valentes da retórica, que perfumam a verborreia com feitos que não passam do domínio da fértil imaginação. Dão corpo à expressão “cão que ladra não morde”. Quando são convocados a mostrar a sua bravura, afinam a agulha para outro quadrante – que se faz tarde para salvar a pele. Há corajosos com orgulhosa folha de registos. Dobram a valentia: não só reivindicam a mentalidade corajosa que os distingue dos demais, como fazem garbo em exibi-la para que as suas palavras não sejam desmentidas pelos actos. A verticalidade da palavra anda de braço dado com a bravura militante. E há os ensandecidos que mergulham na vertigem de uma coragem suicida. Desprendem-se da sua individualidade, possuídos pela convicção que são soldados de causas.

A audácia que se exibe é terreno que se alija de racionalidade. Apenas uma ostentação vazia. Acreditam os valentes que são primeiros entre iguais, o último reduto onde se resguardam os valores de que se julgam penhores. A sua bravura encerra a chave dos mistérios que cimentam toda uma idiossincrasia. No seu íntimo, reclamam reconhecimento pelo feito de serem os primeiros a dar o peito às balas quando chega o momento de o fazer. A afoiteza de espírito cultiva a humildade. Só querem ser reconhecidos por serem fautores de uma coragem que não está ao alcance do comum dos mortais. Não anseiam comendas nem sinecuras que dariam uma coloração vetusta à valentia de que se orgulham.

Eu, um fraco de espírito, confesso aversão a esta bravura imponderada. Tenho medo, de muitas coisas. Acovardo-me se sentir que a morte é o elevado preço a pagar pela exibição da bravura. Talvez os militantes da coragem espúria nem cheguem a perceber que a exibição da valentia é o acto derradeiro da sua vida, quando oferecem o peito às balas em nome de causas de que são apenas uma gota num imenso oceano. Não discernem que poucos dariam o peito às balas pelos demais. Há nesta coragem enlouquecida um disparatado frémito de subserviência do eu perante o todo. Sem perceberem, os que se enlevam pela loucura derradeira da bravura que lhes ceifa a vida, que os demais hão-de ser as testemunhas fatais do acto derradeiro de valentia, numa homenagem que se esgota num instante. Restará, apenas, o vazio da morte como campo final onde repousa a bravura. Inconsequente bravura.

Tenho medo. Dos répteis, dos loucos que erram pelo mundo dispostos a rituais sacrificiais que derrotam a paz de espírito, dos alçapões que se escondem nas paisagens miríficas atrás de mais uma encumeada. E não tenho vergonha em sentir o medo a descer pelas veias, a apoderar-se pela angústia. Este medo é a medida da sensatez, uma imagem da inteligência suprema que pode tomar conta da pessoa. Quantas vezes as loas tecidas a corajosos que deixaram a vida por entrega aos demais são pedras removidas no caminho que todos percorremos, sem que o esquecimento dos valentes não venha falar mais alto, logo extintas as homenagens instantâneas nas lágrimas hipócritas vertidas no velório?

Há descanso, auto-comprazimento, nos corajosos que pagaram com a vida a ousadia da bravura?

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