Acontece na Alemanha. Misteriosamente, notas de euros desintegram-se nas mãos de pessoas atónitas. Apanhadas de surpresa, testemunhas de um estranho processo químico, como se as suas mãos acabassem investidas de um súbito poder mágico. Onde elas tocassem, as coisas tornavam-se matéria evanescente pela acidez de poros que tudo envenenam com o seu toque. Atónitas, nem davam conta como a riqueza se evaporava através das células sudoríferas destiladas pelas suas mãos.
A polícia pôs-se em campo. O mistério não seria acaso. As autoridades não concebiam o mistério. Os agentes alemães começaram por investigar sozinhos. Orgulho alemão: da segurança doméstica curam eles, que as polícias chegam para as encomendas. Semanas seguidas sem encontrar fio à meada. Tempo para o orgulho pátrio ser engaiolado. Pedido de colaboração às entidades congéneres de outros países. Fazia todo o sentido: o euro é uma moeda impressa em doze países. As notas degradadas, prova da conspiração, estavam em tão mau estado que nem os números de série estavam legíveis. Impossível saber onde aquelas notas sido emitidas. Ou se seriam falsas.
O complot ganhava consistência. Os laboratórios forenses tinham entrado em acção. Ao mesmo tempo, pressões inomináveis do topo passavam instruções para a imprensa silenciar as investigações. Noutro plano, influências semelhantes sobre os incorruptíveis agentes empenhados na investigação. A imprensa não estranhava o pedido. O argumento dos senhores do poder era persuasivo: há que não levantar mais ondas, senão as gentes vão-se intranquilizar. A economia poderá abeirar-se do colapso se a confiança na moeda for ferida de morte. Para as entidades de investigação, mensagem diferente: não parem a investigação, mas não esqueçam que há outras prioridades. Se não avançarem na descoberta de pistas relevantes, esfrie-se a investigação. Que acabe por ir para a gaveta dos casos não resolvidos.
Para desgosto dos figurões importantes, há funcionários zelosos que se orgulham de actuar com independência, sem fretes à classe política. Contrariando as indicações apenas sugeridas (com o que a sugestão coincide com persuasão quando feita pelos senhores do topo), investigadores policiais foram puxando os vários fios de um nebuloso novelo. A certa altura, uma pista muito clara apareceu-lhes pela frente. Tão clara que era um convite a esquecer outras possibilidades, por mais insólitas que fossem. Relatórios dos laboratórios forenses revelavam traços de ácido sulfúrico nas notas analisadas. Indícios de atentado, em forma sofisticada. O ácido foi depositado em forma sólida, micro-grãos que se transformavam em estado líquido por efeito do suor libertado pelas mãos dos usuários das notas armadilhadas.
Tão clara era a pista que os investigadores, habituados a suspeitar do óbvio, quiseram a contra-prova. Desconfiavam da facilidade súbita, da prontidão com que emergira esta pista. Estranhavam a sofisticação, sabendo que a fórmula sólida do ácido sulfúrico não está nas mãos dos grupos terroristas suspeitos do costume, por mais profissionais que sejam. Correram uma investigação paralela, em surdina: agentes infiltrados nos laboratórios forenses, na averiguação da independência dos relatórios. Ao mesmo tempo, perplexidade pelas conclusões extemporâneas da classe política: teciam loas à investigação, como se ela já tivesse findado. Falavam em público como se as certezas fossem incontestáveis. As polícias envolvidas fizeram um pacto secreto: todas as investigações seriam feitas nos bastidores, sem enviar sinais que desconfiassem os políticos – os mesmos políticos com uma sede enorme em interferir no curso das investigações.
Tudo se deslindou em meia dúzia de passos articulados. Agentes infiltrados por políticos nos laboratórios forenses fabricaram o apressado relatório. Que, para iludir os escrupulosos investigadores, fornecia resultados verdadeiros. Queriam esconder a verdade, colocando-a onde menos os investigadores a pudessem procurar – debaixo do seu nariz. As notas haviam sido inquinadas com ácido sulfúrico em estado sólido, numa composição que se alterava em estado líquido através do contacto com a gordura das mãos. Em estado líquido, espalhava a destruição do papel.
A descoberta bombástica, reservada para o final: a autoria da encenação terrorista. Todos os olhos apontados para os suspeitos habituais: fundamentalistas islâmicos, movimentos alter-globalização, o grupelho do José Bové, movimentos neo-nazis. Pistas falsas. Os culpados eram uma extensa coligação conspirativa de adversários do euro, ou de saudosistas dos símbolos monetários que cederam lugar à moeda única, ou os suspeitos do costume, sempre ansiosos para destruir os sinais do sistema capitalista. Estavam de braço dado no mesmo objectivo, mas com motivações diferentes. Políticos no poder, desesperados por não terem à mão de semear mecanismos para moldar a economia; keynesianos ressabiados, desgostosos com o “neoliberalismo” triunfante que emergiu com o euro; os suspeitos do costume, num golpe oportunista para derrubar um esteio do “capitalismo selvagem” (de que o euro seria sinónimo); e a extrema-direita violenta, na ânsia de liquidar um símbolo que destruiu a essência das nacionalidades.
A Europa em ebulição: primeiros-ministros, presidentes da república, ministros das finanças e um séquito de conselheiros – todos personagens intocáveis, arcando com a responsabilidade do acto terrorista. Descobrira-se que quiseram semear o pânico na Alemanha, porque a Alemanha corporizava o espírito maligno da moeda única. À ebulição juntara-se um dilema: teriam as polícias força para denunciar o conluio com traços de terrorismo oficial? Os dias seguintes trouxeram a resposta. Centenas de agentes envolvidos na descoberta da conspiração das primeiras figuras, desaparecidos do mapa.
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