Há lugares onde se encontra o perfeito refúgio do mundo. Lugares isolados, perdidos no meio da geografia, onde apenas as rochas, a vegetação rasteira e os íngremes precipícios compartilham a solidão que ali se refugia. E, no entanto, a civilização está tão perto. No inóspito lugar, tão difícil é lá chegar, por caminhos que só pastores e o gado em transumância palmilham; dir-se-ia, um lugar perdido no meio de nada, tão longe da civilização asfixiante. Um lugar que retoma a pureza do ar, por entre paisagens que fazem cortar a respiração.
Entre íngremes subidas e descidas, entre pedregulhos calcados e regatos atravessados, desdobram-se os montes que desnudam a serrania. Há um Gerês que não se imagina da acalmia das estradas traçadas nos mapas. Agora sei-o, é apenas uma amostra do Gerês frondoso que os turistas conhecem no conforto dos automóveis. O Gerês verdadeiro, esse onde a mão do Homem não curou de tocar, esconde-se nas alturas dos montes escarpados. O que, ao longe, parece uma extensa mancha de promontórios, esconde recantos admiráveis, ribeiros de água cristalina e fresca, prados verdejantes semeados no meio das escarpas. Prados onde pasta o gado. Ali, nos fios de água que escorrem das alturas, as reses vêm dessedentar a canícula.
À medida que os montes e planaltos são palmilhados, redobra a oxigenação do espírito. Num isolamento que faz regressar a um estado natural que a civilização corrompe. Assim nos sentimos ao seguir os caminhos dos pastores, emoldurando a pureza da paisagem. Onde não há dedo humano a não ser nas pedras que se amontoam nos trilhos, marcando o caminho aos viajantes que não se querem perder na imensidão da serrania. Os meus amigos que lá vão há vinte anos devem sentir a recompensa do regresso não marcar a paisagem mudada. Não como nas vilas e cidades, na mudança constante da paisagem urbana: prédios que crescem, localidades que se estendem para fora dos seus limites, mais uma rotunda aqui e ali, jardins que se diluem no meio do cimento, novos caminhos que irrompem onde outrora repousavam verdejantes campos. O sinal da modernidade.
Por aqueles montes impera a virginal natureza. A mão humana é limitada na sua acção. Quase inexistente. Limita-se a melhorar os abrigos de montanha onde pernoitam os pastores, que eles também zelam pelo seu bem-estar, perdidos dias a fio na solidão de quem apascenta o rebanho. Uma paisagem que mostra a singularidade da natureza, a sua força indomável: pedregulhos que pesam toneladas e que se amontoam em equilíbrios instáveis, ladeiras que empinam em inclinações impossíveis de dominar, precipícios assustadores por onde deslizam os ribeiros, ora tímidos quando o estio preenche os dias, ora caudalosos quando as nuvens descarregam a sua ira em forma de chuva inclemente.
Lá no alto, no meio de mais um prado que oferece uma cama fofa de relva tingida de um verde reluzente, impera a força dos elementos. A grandiosidade dos penhascos que descansam naquele vale. Onde corre um fio de água que alimenta a relva viçosa que apazigua o cansaço da caminhada. Ao longe, a vista apenas alcança mais montes que parecem beijar o céu luzidio. Lá em cima, parece que tocamos o céu se estendermos os dedos ao alto. É aí que sentimos que pertencemos à natureza, na sua revigorante força. O refúgio momentâneo das doenças da civilização moderna.
Lá no alto, quando os sentidos recuperam o fôlego dos passos ofegantes que separam os montes dos prados sucessivos, tudo se renova. Há apenas um silêncio constante que revigora os sentidos. Um silêncio ensurdecedor, tamanha a sua grandiosidade, tal a estranheza que causa a quem está habituado ao bulício da grande cidade. Estranhamente, um silêncio ensurdecedor. Aqui e ali, interrompido por um pássaro que chilreia na copa da árvore, ou pelo rumorejar da água que corre no regato mais abaixo.
Por momentos, quando nos entregamos nas mãos da serrania tortuosa, acreditar que existe a pureza dos sentidos. É a purificação dos sentidos: os pedregosos caminhos que atravessam os montes escarpados tratam da redenção. Perde-se o rasto à fadiga da selva urbana e da ditadura social.
1 comentário:
É uma belíssima descrição do "Monte". Para ti esta foi a introdução ao "silêncio"; terás a oportunidade de concretizar a interiorização do "silêncio" numa estadia mais prolongada no "Monte". Ao fim de alguns dias lá em cima quase se consegue ouvir o vento a dialogar com as pedras e a erva dos prados a crescer...quase te fundes na natureza no seu estado selvagem e puro. Agora, não esperes mais 20 anos!
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