A brisa tépida e húmida perfuma o dia com uma sensação desusada. O dia pesado e soturno transformou as pessoas em redor. Andam as faces esguias moldadas por um sorriso quase imperceptível, mas ainda assim nítido. Tudo parece tão estranho, porque nos dias buliçosos a cidade se veste, carrancuda, com um ar tristonho. Naquele dia, distante o sol bem atrás das plúmbeas nuvens, as pessoas paradoxalmente trajavam um sorriso. Ao mesmo tempo perturbante, na surpreendente fachada da multidão que ia e vinha levemente pela rua fora.
Tu também fazias parte dos transeuntes que testemunhavam esse sentimento estranho. À medida que os minutos avançavam, os sorrisos esboçavam-se mais largos. Os lábios estendiam-se, rasgavam as bochechas; as pessoas não conseguiam reprimir um riso sonoro. A gargalhada colectiva. Tu eras a única pessoa que assistia anestesiada ao espectáculo sorumbático. Teria que haver motivos para a contagiante gargalhada que ecoava pelas avenidas e que vinha repousar no alcantilado dos ecos mais sombrios.
As pessoas riam alto e não detinham a marcha. Abordavas as pessoas com interrogações. Que ficavam sem resposta. Ou melhor, que tinham num riso libertado com uma gargalhada enfática a reacção dos interpelados. Até os polícias, tão circunspectos e diligentemente militares na postura, não conseguiam reprimir a sonora gargalhada. Dir-se-ia, um festim de alegria contagiara a cidade. Onde antes havia os tons acinzentados que entristeciam as faces fechadas, agora apenas pétalas perfumadas com os risos loucos de quem andava na rua.
Até os cães vadios e as pombas esboçavam os seus risos. Ninguém parava para perceber porque estava a rir. Todos seguiam o seu caminho. Todos percebiam que aquele riso espontâneo e incontrolável era um manancial de bem-estar; para quê estancá-lo? Tu eras o único sisudo. Inquietado com a orgia de risos que te cercava, sem resposta para a sinfonia de gargalhadas que gritava pela cidade. Sentias-te invisível. As pessoas seguiam o seu caminho sem sequer abrandarem quando as interrogavas. Porventura por seres o único que não havia sido contagiado pela febril gargalhada colectiva, pairavas incólume e invisível.
De repente, uma aragem mais fresca soprou de algures. O céu escureceu e de seguida limpou-se de nuvens com uma rapidez inusitada. O sol parecia brilhar como nunca. As folhas, que instantes antes esvoaçavam anunciando a brisa súbita, emudeceram. Tudo se silenciou. Não ouvias o ruído dos automóveis, nem o barulho dos passos apressados que martelavam a calçada, ou os martelos pneumáticos das constantes obras que esventram as ruas. Apenas um silêncio demorado. Já nem o barulho da entontecida gargalhada colectiva. Até as pessoas se tinham evaporado. Nem sinal dos automóveis que àquela hora enxameiam as avenidas e as ruas. Só tu, entregue a ti mesmo, mergulhado numa profunda viagem solitária.
Em segundos, anos a fio passaram à tua frente, como se fitasses uma tela onde se reproduzia o filme da tua vida. Parecia uma retrospectiva necessária para a ordenação dos sentidos. Por vezes, percebias que certos episódios eram repetidos, por breves instantes, numa enfática mensagem: os sinais do passado eram um roteiro. Estavas entregue a ti próprio, sozinho num mundo que parecia ter parado, ou desaparecido, à tua volta. Já não os sorrisos ensandecidos que te perturbavam. Apenas um silêncio gélido, mortiço, que trazia o sabor da solidão.
Naqueles momentos ficaste sem perceber o que sentir: dividido entre a voragem dos risos incompreensíveis que te cercavam e a ausência de tudo em que estavas agora situado, nem sabias qual dos cenários reter. Temias que a normalidade, a rotina diária que tanto te exaspera, não regressasse. Nem os risos enlouquecidos, nem a voragem da solidão. Apenas o regresso ao tempo habitual, com as faces imperturbáveis aos mendigos andrajosos que se acotovelam nas escadas do metro, a insensibilidade à velhinha que tombou ao descer as escadas, as pessoas ausentes mergulhadas no livro enquanto o metro galga o percurso prometido. Naqueles instantes, o tempo tinha parado. Os risos enlouquecidos eram o prenúncio da suspensão do tempo.
Por única vez na vida, a contagem decrescente tinha sido parada. Era o tempo pedido para o reposicionamento que alguém exigiu para ti – ou que tu mesmo, um eu escondido que manobra a tua consciência, agendou. A assombrosa solidão fez-te ansiar pelas faces rosadas que não se cansavam de tanto rir sem saber porquê. Como, aliás, os minutos em que havias sido sitiado pelo ensandecido riso colectivo te fizeram ansiar pela rotineira vidinha que todos levam. Somos eternamente insatisfeitos.
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