21.11.06

A procriação médica assistida segunda a hierarquia eclesiástica: “adultério consentido”

Há alturas em que o insólito remete para a famosa frase de um antigo árbitro de futebol: “desde que vi um porco andar de bicicleta, acredito que tudo seja possível”, terá dito. Eu, que sou ingénuo e tenho imensas dificuldades hermenêuticas, ainda hoje não percebi se ele queria dizer o que disse ou se falava através de uma metáfora. Descontando esses detalhes, que nem vêm ao caso, interessa reter a imagem do porco a dar ao pedal sentado no velocípede. Do domínio da bizarria que preenche os sonhos mais estranhos que possamos ter.

A hierarquia eclesiástica insiste em dar provas vivas do mundo diferente em que vive. Ainda não perceberem que de cada vez que se soltam das ameias (mentais) onde vivem aprisionados e sentenciam sobre temas mundanos, a asneira flutua. Na semana passada, os senhores bispos estiveram encerrados em concílio. Passaram em revista os assuntos da vida corrente, sobretudo onde a moral e os costumes, assim o pensam, obrigam a uma zelosa intervenção em sua defesa. Estes ouvidos que têm um sentido auditivo de primeira água escutaram as palavras límpidas do bispo porta-voz: “a procriação médica assistida é adultério consentido”.

Talvez a reacção de quem me lê seja a mesma que eu tive ao escutar as beatíficas palavras: boquiaberto, ao que se seguiu um cínico sorriso. Convém demorar um pouco nesta sentença da hierarquia católica. Primeiro, a expressão “adultério consentido”. A menos que se confirmem as suspeitas que alguns curas de província são mestres na arte de desfazer famílias mercê do adultério a que conduzem certas senhoras do rebanho paroquial, não alcanço o que percebe a igreja de adultério. A remissão ao celibato e à castidade faz com que este seja um assunto que não é do domínio prático dos homens que outrora trajavam a sotaina. Ensina a ciência que só podemos alvitrar da teoria quando a podemos testar na prática. De contrário, apenas especulação acientífica. É especialidade da igreja para quem o relógio parou no tempo.

Segunda objecção: se é adultério não pode ser consentido; se é consentido, não é adultério (por muito que desagrade à igreja). A palavra carrega a conotação social negativa de quem engana a pessoa (supostamente) amada, deixando-se resvalar para as delícias da poligamia. A hierarquia eclesiástica devia fazer uma peregrinação pelo dicionário antes de espezinhar a gramática. Ao abrir o dicionário na palavra adultério, aparece o seguinte (na Infopedia, só para assinantes): “facto de uma pessoa casada ter voluntariamente relações sexuais com uma terceira pessoa; violação do dever recíproco de fidelidade”. Falar em “adultério consentido” é como imaginar que podemos descer para cima. Por mais imperativos de consciência ditados pelo totalitarismo católico, não há volta a dar ao dicionário. A menos que queriam reproduzir alguns tiques da odiosa inquisição e refaçam o significado da palavra “adultério”. Só para a igreja ficar dona e senhora da razão.

Desconto a mania da igreja invadir a consciência dos fiéis e não fiéis. Que haja alguns fiéis que aceitem pacificamente a intrusão, é um direito que lhes assiste. Mas seguem-se algumas interrogações pertinentes: ocorre aos senhores bispos que alguns católicos encontraram na procriação médica assistida o único meio de alcançar a paternidade e a maternidade? Um filho não é a prova maior de amor? Não é o amor que a igreja prega? Ou um filho gerado no “pecado” do “adultério consentido” deixa de ser repositório do amor filial? Não seria novidade ver a igreja a caucionar discriminações entre filhos nascidos dentro do casamento e fora do casamento.

O que tem a igreja a dizer se duas pessoas casadas mantêm relações paralelas, com ou sem conhecimento recíproco? Pode a igreja invadir a esfera pessoal e decretar comportamentos, sancionar os que desalinham da dogmática comportamental? Pode a moralidade da igreja substituir-se à liberdade individual, ainda que desta resultem comportamentos que chocam a consciência cristã, algo que pertença ao domínio da promiscuidade?

Em rigor, estas interrogações nem sequer se levantam a propósito da procriação médica assistida. Considerá-la “adultério consentido” é fruto de uma imaginação doentia, de uma perversão de espírito de alguém que vê o mundo detrás de uma lente muito desfocada. Esta é a igreja que ergue o dedo acusador contra as condutas pessoais dissidentes da ortodoxia fabricada nos concílios bispais. A mesma igreja que condena a masturbação masculina, decerto: é seiva de vida desaproveitada num acto egoísta, na glorificação do prazer egoísta que contraria o espartilho da fé cristã.
Agora percebo que seitas fundamentalistas, como a Opus Dei, aconselhem os seguidores à prática da auto-mortificação. Constrição do prazer, asfixia da libido, para vingarem os ensinamentos divinos. Talvez estes supranumerários dedicados se deixem tentar pelos clubes de sadomasoquismo…

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