Somos o que queremos? Ou apenas um fingimento daquilo que julgamos ser? Andamos pela vida como actores de nós mesmos. Quase nunca ser dar conta do logro. Dir-se-ia: construímos um mundo dentro do mundo em que vivemos. Um lugar idílico, mas só uma imagem distorcida do que somos.
Passamos pela vida a arregaçar as mangas para as tarefas que se impõem. Quase sempre partimos derrotados. Faz parte do fingimento: o comodismo subestima as capacidades. Quando se depara a inevitabilidade da missão, operamos o pino. E se tão depressa o derrotismo se apoderou, tão depressa vem substituído por uma auto-magnificência que transporta em si a aura dos predestinados. Em cada um de nós há um herói. Nem que seja um herói que se esgota nas fronteiras do indivíduo.
Há muitas coisas que dizemos sem o querer dizer. Muitas coisas que fazemos e que transportam o sabor amargo do arrependimento. Piora o diagnóstico quando nos recusamos a olhar para trás e encontrar os sítios do arrependimento. Quando assim ofuscamos a memória, seguimos em frente orgulhosos do que apenas fingimos ser. Na recusa de discernir o simulacro que nos olha do outro lado do espelho. Jogadores exímios na arte do disfarce. Como se a vida tivesse duas linhas paralelas: aquela que trilhamos com a ostentação do que julgamos ser, nem que seja para apaziguamento da consciência; e a linha obscura do que não deixamos de ser, o lado menos belo que escondemos dos outros, até de nós mesmos.
É o que somos, jogadores sem cansaço do bluff. E não, o bluff não é dirigido aos outros. O destinatário e o remetente do bluff são uma só pessoa. Adormecemos a sonhar com o que julgamos ser. Acordamos convencidos que ainda somos o que o sonho arrepiou. Acordados, desbravamos cada minuto na dissimulação do lado ocultado que é a nossa essência. Nuns casos engendramos a sublime arte do auto-fingimento sem perceber que o fazemos. Noutros casos a simulação é intencionada, a única maneira de haver convencimento de que a cara que espreita do lado de lá do espelho não causa náuseas.
Será um mundo fictício, cristalizado dentro do mundo real de que nem chegamos a dar conta que existe. A perplexidade aumenta se houver tempo para contemplar o que, por método, nos recusamos a fazer: perceber o juízo que os outros fazem de nós. Será a explicação para a osmose a que nos entregamos que reprime a espontaneidade do ser, para comprazimento dos outros que nos rodeiam. Apenas para não sermos arquivados no escuro quarto do esquecimento. Deixamos de ser essência pelos imperativos da socialização forçada.
O que somos é a imagem dos outros. Eis a suprema arte do fingimento a que nos entregamos. A ditadura do colectivo asfixia a espontaneidade do ser. Não interessa o que cada um seja na sua espontaneidade – bondade ou perversidade, generosidade ou egoísta ensimesmamento, o que quer que seja. Lá, de onde falam mais alto os imperativos categóricos, chove a impiedosa água benta que franqueia as portas do colectivo, uma bênção maior que evita o degredo de si. Nem que por aí haja transformação da essência individual. Ou, apenas, a arte de sermos outros diferentes do que trazemos à nascença.
É o primeiro passo para um percurso pejado de equívocos. Um efeito dominó, devastador. Nas sucessivas encruzilhadas, metemos por onde é mais cómodo, pelo caminho mais fácil. Por onde a turba pacificamente caminha. Tementes da dissidência, não vá tombar o ónus da ovelha ranhosa, logo apontada a dedo e isolada do ordeiro rebanho. De cada vez que metemos pelo lado errado da encruzilhada, cada passo vem inquinado com o travo ácido do fingimento. Até que chegue a próxima encruzilhada, já envenenada porque nunca a ela chegaríamos se na anterior o caminho escolhido tivesse sido outro.
O tempo que se acumula é o espelho do rol de equívocos que se sedimentam. A certa altura, nem sequer discernimento para julgar o que é equívoco. Então, já somos – e só – um simulacro de nós mesmos.
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