“As condições materiais de viver, hoje, generalizaram um comodismo que domesticou a razão e detesta os valores e as virtudes. Pode por isso falar-se de uma comodização da razão”, Mário Pinto, in Público, 06.11.06.
De quinze em quinze dias, vou buscar ao artigo de opinião de Mário Pinto inspiração para renegar o conservadorismo bafiento, nas palavras beatas do flagelado católico que se julga alvo de impiedosas perseguições de seitas diversas. Como é aprazível ler as palavras de um pobre católico clamando por comiseração: pela sua lente desfocada vê adversários que exercem sobre os católicos militantes uma feroz intransigência. Não cultivo a vingança histórica. Como qualquer tipo de vingança, é um sentimento abominável. Gostava que Mário Pinto percebesse que, no passado, o monopólio católico julgou, censurou, asfixiou à dissidência os que ousaram desalinhar dos cânones.
Leio Mário Pinto como leio João Carlos Espada e logo apetece cair no regaço da extrema-esquerda trotskista (mas não o faço por sanidade mental). Leio estes baluartes do politicamente correcto a perorarem contra o que eles julgam ser o pensamento politicamente correcto que abjuram. Sem perceberem que é deles o império do politicamente correcto, são eles a correia de transmissão de quem detém as rédeas do poder. O exercício é abjecto, mais porque se emproam na condição de guardiães da tolerância, ostentam a taça do campeonato pelo respeito das ideias antagónicas. Ao quererem sentenciar a mesquinha convicção de que são os perseguidos da sociedade contemporânea, inscrevem-se na rota dos futuros Torquemadas prontos a silenciar quem esteja em desacordo.
Com este espírito algoz, leio Pinto, Espada ou qualquer outro centurião do conservadorismo carregado de teias de aranha e só me apetece ser o seu contrário. Corro o risco de ser visto de braço dado com expoentes da extrema-esquerda folclórica? A discordância dos conservadores embutidos não me trará para a rua com os movimentos folclóricos – isso é certo.
Hoje, a oratória de Pinto arremete contra o relativismo, o subjectivismo, o multiculturalismo. A síntese daquilo a chamou a “razão cómoda”. O traço típico da “pós-modernidade”. A negação dos valores e da virtude: a partir do momento em que as pessoas puderam tocar em bens tangíveis de um bem-estar impensável há décadas, perderam a noção das forças espirituais. A materialização dos seres coincide, na opinião de Pinto, com um niilismo que destrói tudo o que se mexa sem curar de arranjar alternativa: “o que caracteriza a pós-modernidade é precisamente a crise da afirmação de grandes princípios e valores, ou a crise de sentido”.
Anestesiados pelas facilidades que a inovação tecnológica espalhou, interessados pelo bem-estar sensorial, enredamo-nos no comodismo. Fuga dos sacrifícios exigidos pela demanda da luz espiritual. Até o Estado perde com a deriva comodista: “neste contexto de redução da vitalidade espiritual da própria civilização ocidental, a sociedade civil e o Estado tornam-se mais fracos; e, relativamente, tornam-se mais fortes os grupos de interesses e os movimentos ideológicos que vão no sentido do comodismo”. Retomando uma teoria da conspiração enunciada há semanas a propósito do neo-malthusianismo associado ao imperativo pró-aborto, Pinto alista os arquitectos do capitalismo no rol dos fautores do comodismo dominante. Vai tudo a eito: capitalistas, relativistas, agnósticos, marxistas, todos responsáveis pela “desespiritualização” do ser humano.
Pinto idealiza um mundo de frades e freiras, um regime monástico em que todos os mortais sejam servos de um deus maior. Dedicados a mostrar a entrega a deus com a óbvia predisposição para sacrifícios carnais ou espirituais. Uma masmorra, em síntese. Se é este o reino de deus, se este é o paraíso que consiste em reprimir o bem-estar das pessoas para que se sintam espiritualmente bem, concluo que a religião é uma prisão do ser. A antítese da liberdade. O que me permite compreender porque Pinto está tão preocupado com a desvalorização do sacrossanto Estado às mãos das forças vorazes da globalização que sopram os ventos do “comodismo”: o Estado é, tal como a religião, uma hierarquia que impõe a sua vontade sobre os servos que humildemente se ajoelham perante tão omnipotentes autoridades.
Pode a “cultura do comodismo” perturbar os quadros mentais de Pinto e de outros beatos. Têm o direito de o expressar, pastores fiéis que disseminam a palavra divina, na derradeira tentativa para evitar que mais ovelhas se tresmalhem para a barricada do comodismo. Deviam, ao menos, disfarçar a sua intolerância (eles que se auto-convencem que são campeões da tolerância). A prova é o seguinte naco de prosa do punho de Mário Pinto: “a BBC está dominada por homossexuais e ocupada em desproporcionado número por minorias étnicas, com reflexo, por exemplo, no maior cuidado em não ofender a comunidade muçulmana do que os cristãos”.
Se não é obrigatório ser inquilino de conventos, porque espreitam eles pelas ameias da clausura e tentam arregimentar mais fiéis para as celas vizinhas? Posso estar enganado, mas esta postura beata só desajuda o desígnio de Pinto & companhia: mais um passo para desviar as ovelhas do rebanho. Por isso, os artigos de Mário Pinto são, para mim, inestimáveis nutrientes.
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