28.11.06

O destempero dos lugares-comuns


Nunca o ouvi dizer um lugar comum, no amor ou na política, algo que já se tivesse ouvido”, José Manuel dos Santos sobre Mário de Cesariny, Público, 27.11.06

É o que distingue os génios dos simples mortais, daqueles que fazem carreira enquistados no génio alheio – e por isso se julgam génios, sem perceberem a dimensão que os separa dos génios que parasitam. Repetem palavras. Que repetem expressões que estamos cansados de ouvir. Fornecem o gesso que molda o linguajar nacional que se mete pelos ouvidos, entra bem fundo pelos alvéolos que separam o aparelho auditivo das meninges que processam o inteligível e descartam o supérfluo. Teimosos, os lugares-comuns que enxameiam a existência depressa inquinam as meninges, corrompem as células inteligentes que se habituam a pouco. Já incapazes de erradicar o lugar-comum. Quando se alteia no papel de lugar-comum, estamos anestesiados. Por muita luta ao lugar-comum, é força irremissível.

Os lugares-comuns distanciam-nos da genialidade. Eles entram, céleres, pela codificação da linguagem que imperou nos costumes, a fronteira necessária para a socialização. Trocamos lugares-comuns a propósito de tudo. Usamos frases feitas que importamos da boca dos outros, que por sua vez as foram pescar a dizeres alheios. No promontório da desonestidade intelectual, aprendizes que pavoneiam douta sabedoria poluem na sua boca palavras sábias furtadas aos outros.
Os lugares-comuns enfadonham a existência. Um cortejo de lacraus que rabeiam e gesticulam o pescoço, como se fossem mamíferos a sobreviver à tona da água enquanto um turbilhão vindo do fundo suga as pernas para o arenoso fundo. Os lugares-comuns andam presos às costas destes parasitas que ostentam garbo e lustrosas conquistas. Não percebem os tormentos que os penetram como balas lancinantes: a pequenez e o torrente de lugares-comuns, cavilha e parafuso da mesma engrenagem. A genialidade ancora-se na originalidade. Não pela vertente da criatividade espúria, que não peca pela trivialidade mas é incapaz de romper com o banal. Medíocres somos todos, criativos alguns, génios quase nenhuns.

Todos os dias, no minuto desprevenido, o alçapão do lugar-comum. Uma frase feita a preceito, a sublime síntese da discussão. Sabemos que a antecipação no lugar-comum faz elevar a auto-estima e a cultiva admiração dos outros pelo brilho jactante. E é o engodo do adágio popular, mesmo quando o arrebatado elitismo desdenha do povo ignaro que alimenta o imaginário colectivo com ditados insignificantes. Uma maleita irreprimível. Tarântula negra aninhada no cérebro, dele se apoderou, mudou-o para a vegetativa e maquinal fonte de repetição do que escutamos e lemos.

Quem explica o paradoxo? Se não lemos, se não bebemos as palavras dos outros, incultos e insociáveis. Se entregamos o tempo à leitura dos outros, se há a embriaguez pelas palavras mágicas que os grandes escritores legam ao porvir, incensa-se a lucidez que nos deixaria às portas da genialidade. Irrompa da superfície em direcção do céu, ou faça o voo rasante em direcção ao solo, sempre o mesmo efeito: a acomodação ao que já está, a insaciável sede de criar sem conseguir romper com o estabelecido.

Às vezes pergunto-me: esta viciante doença não convoca o isolamento do espírito? Não ler, não ouvir palavras ecoadas das outras bocas, não conhecer o que vai pelo mundo, encerrar os sentidos às artes. Regressar a um estado de pureza virginal, em que tudo fosse começado de uma folha imaculadamente branca. Só assim fugir à ditadura do lugar-comum, aos gritos bezerros da voz popular. Inventar uma gramática só para mim e desafiar os outros, pela vertigem do desconhecido, a decifrá-la. Mas tudo o que tenho é uma folha traiçoeiramente alva: gritos que cospem bem alto as palavras que povoam a minha cabeça, as palavras lidas, as palavras escutadas, as palavras que dançam livres ao vento. A folha já esteve preenchida na sua alvura. Agora é um depósito de sombras que mancham a alvura da folha branca, o pressentido uivar da alcateia que urra em uníssono. A criação, essa, gasta pelos lugares-comuns que não há mister de derrubar.

Não há narcisismo imberbe. Nem reivindicação de genialidade. Muito menos sede de reconhecimento público. Basta a inquietação dos lugares-comuns que abastardam a linguagem. Gostaria de ser como o poeta, a quem “nunca se lhe ouvia dizer algo que já tivesse sido dito”. Simplesmente o zénite na redescoberta da palavra, na revisitação dos seus sentidos múltiplos, senão mesmo na reinvenção dos vocábulos. Sem convenções, nem as amarras que manietam o rebanho ordeiro que segue o caminho marcado.

Sem comentários: