28.2.07

Proíbam-se as manifestações!


É a vontade que percorre o íntimo do ministro da saúde. Tirando o chefe da banda, este é o instrumentista mais arrogante, mais presunçoso, com menos poder de encaixe à opinião dissidente. São recorrentes os episódios de má educação de Correia de Campos, quando interpelado por jornalistas não domesticados ou adversários responde de forma agreste, ruborizando de fúria, impensável que é haver alguém que discorde de sua excelência.

Na mais recente polémica em que o ministro furacão se envolveu – a extinção de urgências hospitalares em diversos municípios, a contra-gosto dos autarcas e dos munícipes – Correia de Campos usou um tacticismo opulento. Elevou a parada, que fez soar as sirenes nos municípios afectados, para depois recuar aceitando negociações. Sem deixar cair a máscara, pois afinal não se tratou de um recuo mas de uma manobra negocial que trouxe os autarcas ao encontro do objectivo que teria definido à partida (sem, contudo, o anunciar). Pelo meio, a exibição do grotesco anti-democrático, pelas meias palavras do ministro e pelas palavras sem peias de uma qualquer secretária de Estado, lugar-tenente do ministro: aos municípios, só resta a negociação. Fica o aviso sublime: se vierem para a rua em manifestações de protesto, nem sequer há negociações.

Um dos embaixadores deste governo teve uma tirada que só pode ter sido resultado de uma momentânea distracção: “para os recalcitrantes ficou a alternativa: ou entram em negociações e obtêm alguma contrapartida, ou prosseguem a contestação e ficam sem nada...”. Eis o espírito reinante entre os socialistas que nos governam. A contestação entrou no domínio do crime de lesa-majestade. Compreendo que para o governo tão atento aos detalhes de imagem, as vozes de protesto que ecoam nas ruas sejam tudo menos música de violinos para os seus ouvidos. Compreendo o incómodo do governo quando depara com opiniões diferentes da verdade oficial que nos tenta impor. É nestas alturas que o diagnóstico se descerra diante dos meus olhos com uma nitidez impressionante: quase trinta e dois depois, a democracia ainda tão longe da maturidade. Os aprendizes continuam a confundir maioria absoluta com exercício ditatorial do poder.

Por portas travessas, proíbe-se aquilo que a lei proíbe de proibir. A liberdade de expressão e a liberdade de reunião são atributos de qualquer democracia que se preze. Esta não é a opinião dos magníficos governantes socialistas que acamparam no poder absoluto. E se lhes fica mal impedir as manifestações onde são apregoadas palavras de ordem contra decisões do governo, dá-se a volta pelo outro lado: atira-se a cenoura para a frente dos dissidentes, seduzindo-os com a possibilidade de negociações; se teimarem em desfilar na rua, nos protestos audíveis que tanto dano causam na sagrada imagem do governo, “ficam sem nada” (nas palavras sugestivas do embaixador do governo).

Não, esta não é a táctica da cenoura que faz mover o asno. É a táctica que encapota o pau que vai e volta nas costas dos manifestantes. Quem o manuseia é o ministro da saúde, que ficaria melhor a embelezar uma qualquer ditadura. É uma criatura muito perigosa, Correia de Campos. Não esconde a aura de predestinado, o homem que sabe mais de saúde que todos os demais especialistas juntos. Só ele sabe da poda. E como se não bastasse anunciar-se como providencial figura, como se não fossem suficientes as lamentáveis exibições de intolerância, ainda apanhamos os excessos de personalidade diletante do ministro: as piadas de mau gosto soltam-se da sua boca desbragada, sem que o chefe lhe dê um puxão de orelhas público (porventura o chefe da banda é dos poucos – para além da entourage do ministro obrigada a rir-se da piada de mau gosto, não vá o ministro ficar a rir-se sozinho – a apreciar o duvidoso sentido de humor de Correia de Campos). Em poucos dias, duas pérolas de humor ministerial: primeiro destilou fina ironia fazendo-se interessado na vida interna do PSD, surgindo como promotor da liderança eterna de Marques Mendes; depois, no mais deplorável humor: não sei se toldado pela etilização de um lauto repasto, sentenciou que a diminuição da sinistralidade rodoviária se explica pelo encarecimento dos combustíveis.

Da mesma forma que Correia de Campos, lá no seu íntimo, gostaria de proibir por decreto todas as manifestações que o contrariam, porque não multá-lo de cada vez que liberta o seu humor de mau gosto? É o que dá quando campónios ascendem na escala social e desaguam na centelha do poder. Deslumbram-se com o dito, deslumbram-se com o brilho que vêm em si mesmos, e passeiam este grotesco sentido de humor. São ditadores em potência. Cuidado com eles!

27.2.07

Os olhos também comem


Os sentidos são um alçapão. Só quando a queda é amortecida pela desilusão do engodo dos sentidos é que se percebe que ali havia um alçapão. Muitas vezes, a visão é o sacrificial altar onde as decepções vêm rumorejar. Os olhos disparam os sinais nervosos que, depois de descodificados, são o nutriente do logro: aos olhos que se enamoram do festim visual, segue-se o vazio do que se prova a convite irrecusável da vista.

Tantos exemplos do chão falso que os sentidos escondem. Para não resvalar para o obsceno, atenção apenas ao mobiliário que exala design. Os móveis de sala, os sofás, candeeiros e outros adereços incarnam o traço arrojado, a cor da moda que vai mudando (ora o castanho mel, ora o castanho tão escuro que se confunde com o negrume), as formas que se tornam bizarras e questionam a utilidade das peças de mobiliário. Às tantas, temos cadeiras em que ninguém se consegue sentar mais que uns instantes, candeeiros que ofuscam a luz, adereços que só a imaginação do autor decifra utilidade.

Há dias, descobri que até o mobiliário de casa de banho está possuído pela vertigem do design moderno. Na primeira reacção, estranhei. Não será este mobiliário a antítese necessária da estética? De resto, é ali que deixamos os dejectos que o organismo recusa. A casa de banho devia ser um local espartano. Mas há quem faça da casa de banho refúgio diário, por longos minutos, onde se desfolha alguma da literatura remetida para segundas núpcias. Em contraste com as razões que apontam para a decoração monástica da casa de banho, argumentos no sentido contrário: se a casa de banho é um lugar de alívio, o espaço de onde saímos reconfortados, criem-se as condições para a tarefa estar confinada a um espaço (sempre exíguo) que traga aquietação e comprazimento.

O design é palavra de ordem nos utensílios de casa de banho. São as louças que reproduzem formas arrojadas, cores intensas que emprestam um ambiente mais acolhedor à tarefa diária, piaçabas que deviam emparelhar com cadeiras para a mesa da sala ou cortinados com muitas ou poucas cornucópias. Piaçabas em metal, com a lisura das formas arredondadas, timidamente escondidas num canto esquecido da casa de banho. Quando despertam a atenção, apetece manuseá-las, sentir o tacto delicado do metal tratado, como parecem massajar os dedos quando a mão as investe contra a água que borbulha pelo gargalo da sanita.

Haverá diferença entre as esbeltas piaçabas dominadas pelo império do design de interiores e as piaçabas de antanho, um tosco cabo de madeira a encimar umas farripas desalinhadas? Dirão os puristas do design: é a diferença entre o pedigree e o rafeiro. A modernidade que campeia ordena a escolha: o povo, que se adestra aos modismos, embevece-se com as peças redesenhadas pela régua e esquadro dos criadores de mobiliário, emproadas no requinte que hipnotiza a vista e trai os sentidos restantes. A tentação do último grito do design consome-se pouco tempo depois do objecto ser embalado. Um par de utilizações devolve-lhes o anonimato, despromovidas à condição de vulgares peças que convivem com a indiferença diária.

Um moralista teria a sentença preparada na ponta da língua: vivemos cercados por um mundo de ilusões. Aprisionados aos cânones da estética superficial, apascentados pela fina espessura das coisas que se nos oferecem como engodo da vista. Não admira – prosseguiria o moralista – perante a taciturna espuma da frivolidade; só nos interessa a fina camada que reveste os outros, o verniz traiçoeiro que oculta a cepa de que somos feitos. O moralista seria loquaz: é a humanidade a esvair-se de dentro para fora, só restando na crosta delgada que a enfeita.

O moralista não tem razão. Extrapola, em divagações circundantes, entretece elos onde há apenas, e se tanto, coincidências. O moralista perde a razão porque se acha detentor de uma luminosa aura que o põe a adejar sobre os demais, empossado de dons especiais para os ajuizar. O moralista é um tristonho que persegue a felicidade dos outros. Ainda que seja uma estéril felicidade, ou apenas o pretexto que encontra para esconder debaixo do tapete a sua incapacidade para esboçar, sequer, um leve sorriso. Enganado está, porque a vista envia os sinais que são a espontânea decifração das coisas, das pessoas, das palavras.

Onde há espontaneidade não deve ser erguido dedo censor. Comem assim tanto os olhos que venha o espírito a ficar defraudado pela ilusão dos sentidos? Ainda que o seja, assim o ditou o império dos sentidos. Nem que por instantes apenas, os olhos comeram e espalharam o conforto gerado pelo dom da vista. Mais um exemplo da filosofia de vida que sobe à superfície, um hedonismo que vindica os seus dias.

26.2.07

É-me permitido não gostar de Zeca Afonso?


Regresso à música de intervenção. Há dias foi evocado o vigésimo aniversário da morte de Zeca Afonso. Por um dia, resgatou-se a música do cantor de protesto. Por um dia, falou mais alto a conveniência oportunista: para uns, a evocação é a maneira de ecoar um unanimismo que diz tanto acerca do significado da palavra “liberdade”, que estala nas suas bocas como castanhas acabadas de sair do fogareiro (já lá irei); para outros, porque há convenções estabelecidas que não podem ser contestadas; para outros ainda, um silêncio cúmplice, tementes que uma voz dissonante seja pretexto para uma flagelação pública.

Não gosto da música de Zeca Afonso. Esta manifestação de interesses deve ser decomposta em duas partes. Primeiro, é a música que não me cativa. Às vezes, uma revisitação da música popular – género que muito se distancia das minhas preferências. Outras vezes, os sons sofrem uma mutação genética, como se fossem vagas alterosas que se agigantam para receberem nos braços as palavras de protesto que encerram um manifesto político claro. E, em segundo lugar, é esta feição de música de intervenção que me coloca nos antípodas do artista.

Fique claro que em homenagem à liberdade de expressão aceito as exibições criativas de todo o jaez. Longe de mim ser fautor da degradante censura que existia no tempo da ditadura, da censura que algumas vezes não teve a perspicácia de decifrar a linguagem codificada de Zeca Afonso e outros cantores de protesto que conseguiram, pela música, minar o regime decadente. Há lugar à música de protesto, como deve ser garantido mercado à música pimba, ou ao jazz, à música minimal-repetitiva, ao folclore, etc. Da mesma maneira que defendo a existência da música de protesto (e de todos os géneros musicais sem excepção, qualquer que seja a mensagem – ou a ausência dela, em tantos casos), conceda-se-me o direito de afirmar a minha antipatia por um ícone da música de intervenção que continua a preencher o imaginário de uma geração marcada pela asfixia da ditadura.

Para além dos ouvidos não terem sensibilidade à linguagem musical de Zeca Afonso, fere-me a mensagem política das suas composições. Não me é difícil reconhecer o papel que esta geração de músicos teve no combate à ditadura. Nessa medida, prestaram um contributo inestimável para resgatar a liberdade cerceada pela ditadura. Os encómios chegam ao fim quando a ditadura é derrubada e os cantores de intervenção conquistam a plena liberdade de expressão, sem as amarras que tolhiam a sua criatividade. Passaram, sem excepção, a ser instrumentos ao serviço de um programa político que propagandeava a negação das liberdades básicas do ser humano.

É por isso que há pouco me referia à hipocrisia dos que empregam constantemente a palavra liberdade, quando seguiam uma ideologia (o comunismo) que supõe a negação das liberdades. Os cantores de protesto usavam a música para atrair líricos embevecidos com as promessas de novos amanhãs soviéticos. Estes eram ingénuos que caiam no engodo da música de intervenção. Os artistas do género, canhestras personagens que armadilhavam a palavra liberdade: na sua boca, “liberdade” soa à mesma falsidade das donzelas que tentam esconder a virgindade que é apenas uma distante recordação.

Pode ser grande a tentação para glorificar Zeca Afonso, até porque está morto e os artistas mortos ascendem mais depressa ao panteão dos heróis imunes à crítica ou à dissidência estética. Pode haver apenas a memória pela tormentosa luta para vergar a ditadura, o que decerto leva alguns ingénuos a esquecer o sacerdócio pelo comunismo, logo, pela negação da liberdade, de que Zeca Afonso foi um dos arautos musicais. E se esperam que vá dar para o peditório do obrigatório unanimismo que falou tão alto por ocasião dos vinte anos da morte do artista, lamento ser uma voz dissidente. Se quiserem, chamem-lhe preconceito; eu prefiro ver nisto a recusa em cair na liberdade armadilhada que nos era cantada por Zeca Afonso. Nem sou ingénuo ao ponto de engrossar um unanimismo tão oportuno para os comunistas.

De regresso a casa, escutava na Antena 3 a repetição de um programa onde se fazia a hagiografia de Zeca Afonso. Cinco minutos depois, veio a bonança quando a Rádio Universitária do Minho me ofereceu Cousteau.

23.2.07

Ai a etiqueta!


O direito à imbecilidade é um direito inalienável. Diria mesmo, um direito indeclinável. Faria sentido inclui-lo no catálogo de direitos de personalidade que tem crescido nas Constituições dos países de vanguarda. O direito à imbecilidade é um reforço da personalidade que actua em dois sentidos: para quem exibe garbosamente a sua cretinice, que tem direito a ostentá-la; e para os destinatários, que se espraiam no sofá em demoradas gargalhadas perante a exibição de parvoíce.

O que me traz hoje é um exemplo de imbecilidade em estado puro. Para começar, convém pedir a ajuda do dicionário para ter a certeza que, ao empregar a palavra “imbecilidade”, não estou a fazer um uso indevido do vocábulo. Reza o dicionário que imbecilidade é a “qualidade do imbecil”; na sua contextualização psicológica, um imbecil é alguém com “um atraso mental acentuado, entre a debilidade mental e a idiotia, distinguindo-se desta última pela aquisição da linguagem falada e pelo nível mental, que, determinado por testes, se situa entre os três e os sete anos”.

Há algum tempo, tomei conhecimento de uma crónica social, no semanário Sol, de uma personagem que responde pelo nome de Assunção Cabral. Nunca tinha ouvido falar da senhora. Nem sabia que a madame debitava prosas com um elevado teor intelectual, só comparável à espessura dos temas da sua especialidade. A senhora escolheu para crónica da semana os “possidónios” que têm gatos domésticos. Vale a pena pedir emprestadas à dondoca algumas das suas palavras. Garanto que oferecem momentos de humor ímpares.

No seu consultório de etiqueta, escolheu para dissertação semanal uma pergunta colocada pela dona Ana Isabel Lima: “convidaram-nos para jantar em casa de um colega do meu marido que tem dois gatos. Tenho pânico de gatos. O que posso fazer?” Assunção Cabral dá, de seguida, uma lição catedrática de boa etiqueta. “Exija simplesmente que tranquem os gatos”, sentencia a excelsa lente das regras de etiqueta social. Ora temos um primeiro problema. É certo que entendo pouco de etiqueta e salamaleques afins, mas acho estranho que um convidado possa exigir ao anfitrião que faça isto ou aquilo, senão o convidado recusa-se a entrar na casa do anfitrião. Os papéis estão trocados. A dona Assunção Cabral não gostaria, acaso me convidasse para um repasto deslumbrante na sua casa (coisa altamente improvável, mesmo que se desse o acaso de nos conhecermos), que eu exigisse a retirada do jarrão no hall da entrada, ou que as cadeiras da sala não fossem Luís XV. Ou que eu, como convidado, fixasse a ementa do que ela, como anfitriã, ia confeccionar (ou encomendar a uma empresa de catering, hipótese mais provável).

Depois vêm os tiques de linguagem tão caros às pessoas que passeiam a sua superioridade de etiqueta: “os gatos são possidoníssimos.” E a sentença fulgurante: “quanto mais sofisticada for a raça mais pirosos são os donos.” Um enigma! Poderei estar perplexo por ter em casa um gato persa, ou incomodado pela ideia de haver uma relação inversa entre a sofisticação da raça e a “piroseira” do dono. A ideia tira-me o sono: eu, tão “piroso”, apenas porque tenho um gato persa. Quanto a explicações para a relação causal, nem uma palavra. Suponho que por falta de espaço, que a coluna dedicada à dona Assunção Cabral tem palavras contadas.

Segue-se outra pérola, só ao alcance de alguém muito acima da média quando a inteligência dos mortais é medida: “os gatos são também traiçoeiros.” Quando esperava as explicações costumeiras – não conhecem o dono, são agressivos, pouco amigáveis com os estranhos, etc. – veio a justificação mais improvável que alguém, no seu juízo, podia usar. Os gatos são traiçoeiros porque as madames, entretidas no chá das cinco a destilar a língua viperina, sentem “de repente (…) nas pernas aquele calor peludo, absolutamente repelente, e reparamos que a pató da dona olha embevecida para o bichano, sem se preocupar em enxotá-lo. E nós, com vontade de lhe dar um pontapé (…).” De tanto doer a barriga pelas gargalhadas que não consigo reprimir, apenas tenho fôlego para duas observações: aprendi que existe a palavra “pató” (em rigor: o dicionário desconhece-a; mas o problema pode ser do dicionário, que é “possidónio” e “piroso”, para não dizer mesmo “pató”, uma reles criatura que nada sabe de etiqueta); e que a dona Assunção Cabral deve ser frígida, pois não se sente confortável com o “calor peludo” entre as suas pernas.

Depois de perorar sobre a falta de higiene dos gatos, denunciando o mau cheiro que espalham pelas casas – o que revela desconhecimento de causa, pois o gato é inodoro – a cronista social põe uma pedra sobre o assunto: “porque não faz saber com antecedência ao colega do seu marido que ter gatos é definitivamente uma ordinarice indesculpável?” Importa-se de repetir: “ordinarice”? “Indesculpável”? Ó dona Assunção Cabral: continue assim que vai longe. Um dia destes, entra no púlpito onde só conseguem ascender escritoras de alto calibre intelectual, como Paula Bobone ou Margarida Pinto Rebelo. O género está implantado no mercado, é garantia de sucesso e dá generosos lucros em caixa.

22.2.07

Desamor da portugalidade


Há uma sensação estranha que me percorre quando contemplo a imagem do pátrio território tirada de satélite. Ali está o pequeno Portugal, exposto aos olhos de qualquer voyeur que vagueia pelos céus, ou apenas pela fantástica ajuda da tecnologia espacial. Quase como se o país estivesse a posar nu para a fotografia, despojado das vestes que o branqueiam em tudo aquilo que ele é. Sem lugar às operações de maquilhagem, o quotidiano simulacro do país que ansiava ser outrem.

Ensaia-se uma visão da geografia de Portugal vista de satélite: como se assemelha ao perfil de um velho desdentado e, supõe-se, rezingão com a sua desdita. Um velho cabeçudo, pois toda a costa ocidental que vem da desembocadura do rio Minho até ao estuário do Tejo retrata uma farta cachola onde se esperaria que refulgissem avantajadas capacidades de intelecto. E um velho narigudo, por culpa do ponto mais ocidental que a Europa conhece – o cabo da Roca, ali onde a Serra de Sintra se desvanece num promontório. Ou o nariz das velhas alcoviteiras, de braço dado com as não tão velhas que levam longos anos no inacabado tirocínio da coscuvilhice.

As disfunções faciais continuam na caminhada para sul. Debaixo do tremendo nariz jaz uma boca desdentada: o vasto estuário do Tejo, um mar de água doce que se espraia tomando conta das acolhedoras planícies da Lezíria. Visto do céu, é Portugal boquiaberto que se espreita ali no alcantilado lisboeta. O ar de espanto com as promessas eternamente adiadas, sucessivos amanhãs embelezados por cânticos ternurentos que espalham, por dias que seja, a esperança de um devir procrastinado. Se o espírito acordou reluzente pelos sonhos idílicos, os olhos podem fitar a imagem de um Portugal sorridente, desdentado mas sorridente. Pela adversidade somada à paradoxal gargalhada que, olimpicamente, exibe o maior dos feitos lusitanos: uma capacidade inigualável de rir, com os dentes todos à mostra, das desgraças caseiras.

Prosseguem as calosidades faciais que desfeiam o Portugal garboso. A boca entreaberta repousa num queixo protuberante ali para os lados da península de Setúbal. O queixo contorna os precipícios da boca e quase se encosta ao nariz sinaleiro. Parece um porto acolhedor onde o nariz âncora o seu descanso. É um queixo generoso, o vento alísio que doma as aragens agrestes do Atlântico que embatem no nariz exposto. Queixada nutriente dos queixumes que são a voz das carpideiras que habitam em cada uma das almas aqui nascidas. Dá ideia que o avantajado queixo aloja as frustrações acumuladas, as tristezas incontidas, as agruras da vida que se somam ao longo dos anos. Como o colesterol ajeitado em massa adiposa em zonas do corpo traçadas pelo giz do inestético.

Se a imagem deslizasse um pouco mais para o meio do enorme oceano, lá encontraríamos os Açores e a Madeira. Minúsculas massas de terra, assim descobertas a olho de pássaro. Os perdigotos expelidos pela boca desbragada que exala as palavras erradas no momento menos apropriado. A boca que se lamuria todos os dias, ou a boca maldizente num acesso de arrevesada inveja pelo alheio. A raiva indelével que ruboriza a face enrugada, ou apenas o mostruário das cadeias montanhosas estendidas a norte do sistema Montejunto-Estrela. E a pele tão gasta, penhora da ancestralidade pátria, no garbo permanente de quem se diz possuir as fronteiras mais estáveis na geografia europeia. Pele rugosa, nas pedras amontoadas nas serranias a norte, nas fragas que escorregam em precipícios vorazes rumo às tímidas linhas de água que sussurram, escondidas ainda, entre a densa vegetação que nidifica nas margens.

Portugal é, definitivamente, masculino. Dobrado o rio Sado, a costa aplaina-se, abre os braços aos extensos areais onde as ondas do mar vêm estrepitar com o troar enfurecido dos ventos invernais. A costa alisada conhece uma erupção quando o viajante detém a vista no cabo de Sines. Essa vírgula que se desprende da aplanada costa tem as proporções da maçã-de-adão que os corpos masculinos ostentam. Nota-se, porém, caroço nada protuberante, ou a imagem de uma masculinidade héctica, o simulacro dos bravos homens das façanhas imberbes que não passam de ardis para asfixiar a covardia latente.

Em nada a geografia que foi destinada a Portugal o favorece. Ao terminar, a vista faz uma paragem na fronteira do norte, tenta discernir a imagem desenhada pela linha de fronteira. Sugere-se um penteado desgrenhado, os cabelos em pé, sinal de que a lusitana pátria vive afogueada pelo sobressalto perene. Algo vimos que nos assustou, para sempre. Seria um espelho diante do pequeno gigante acantonado nos fundilhos da Europa? A reflectir a imagem do que somos.

21.2.07

Regressar ao passado: que utilidade?


A questão é esta: qual o interesse em resgatar da memória aqueles momentos inesquecíveis passados algures? E depois celebrá-los, anos mais tarde, como se fosse possível recriar esses momentos que não se apagam jamais do álbum das boas recordações?

Resisto a gastar o presente na recuperação do tempo emoldurado. Há nesta atitude uma relutância metódica, acentuada pelo tempo escasso que temos pela frente. A cada instante perdido em recuperar memórias do passado, há preciosos minutos que se perdem, daqueles minutos que interessam viver – porque são os que contam, instantes tangíveis que podem trazer lugares, pessoas, experiências diferentes, um livro, um disco, um filme, uma peça de teatro que nunca passaram diante dos nossos olhos. Mergulhar no passado é roubar tempo precioso que se consome com a voragem conhecida. Diria que os instantes reservados à revisitação dos tempos idos são a negação do presente, como se o regresso ao passado trouxesse um bálsamo pelo desconforto da vida actual.

A recusa em viver agarrado à tábua do tempo ido não é a rejeição do registo pessoal fixado na aura do tempo. O passado não se renega: decerto os maus momentos, os equívocos, os passos em falso, as palavras que ditaram arrependimentos; menos ainda os instantes inolvidáveis, imortalizados por definição. A rejeição do tempo vivido é a negação da pessoa que se fez nas vicissitudes do tempo. Porém, causam-me desconforto os repetidos momentos em que respigamos os cantos perdidos da lembrança, na exaltação de instantes gratos, convocando as reminiscências que se aclaram quando as palavras que retratam esses momentos ecoam em surdina. Quanto mais o tempo for revisitado, mais as memórias se desgastam. E depois fica a impressão: de tantas vezes a boca degustar as memórias aprazíveis, elas começam a perder a espessura, diluem-se na inconsequência das sucessivas revisitações.

Inquieta-me a prisão dos tempos idos. É como se as memórias de que somos penhores fossem a masmorra que aprisiona o tempo presente, castrando os ponteiros do relógio que querem avançar e não conseguem. Não é possível fotografar todo o tempo passado e dele fazer a senda percorrida no tempo presente. A constante recuperação do outrora perfila no horizonte a insatisfação contemporânea.

Diria que quanto mais submergirmos no tempo emoldurado, maiores as ilusões de que esse tempo possa ser reinventado. Não interessa que o passado seja irrepetível. Recria-se, apenas para apascentar as boas memórias guardadas. Ou o impulso para recuperar a jovialidade e a energia da juventude que já tiveram o seu tempo, agora que as consumições do cansaço físico e mental começam a ser visita regular. O fio temporal que faz a ponte com as gratas recordações, na sua visita reiterada, é a negação do que o tempo fez de nós entretanto. Uma pulsão irreprimível de voltar aos registos da memória, houvesse a necessidade de refazer o tempo presente pela sua incomodidade.

A nostalgia é uma tirania. Uma absurda limitação do tempo que nos está destinado, colete-de-forças que hipoteca o devir. Uma dependência, negativa como todas as dependências. De que vale resgatar o tempo ido, senão para as virtuosas ilações que fazem o amadurecimento? Para além disso, sobra a prisão voluntária, algemas que os saudosistas colocam em si mesmos. A nostalgia é limitação da liberdade de espírito. Perfeita inutilidade, consumição do tempo presente, mais o desgaste do tempo futuro que o regresso ao passado vem furtar. Inquietante deriva que parece desvendar uma auto-negação, o punitivo choro pelo tempo presente tão lancinante. Até nisto o resgate do outrora é um piedoso, mas ao mesmo tempo doloroso exercício, imerso numa ilusão: quanto mais regular a incursão pelos momentos inesquecíveis, mais o travo amargo sentido pelo contraste entre o tempo recuperado e o tempo sombrio de agora.

Sim, o passado não se renega. É contrário à dignificação do que somos hoje, pela espessura do tempo que nos trouxe até ao presente. Mas sim, a nostalgia é uma prisão, um enfado pelo contraste entre as memórias lustrosas e a rotina entediante que tomou posse com o tempo acalmado.

20.2.07

Corso carnavalesco idealizado


Há coincidências que nascem no tempo acertado: Alberto João Jardim demitiu-se a meio das festividades de Carnaval. Desenganem-se os que pensam que este texto vai engrossar o coro da crítica fácil ao político boçal. Pelo contrário: vai partir do exemplo que o presidente do governo regional da Madeira deu durante anos a fio – ser folião no cortejo carnavalesco, a ribombar o bombo em trajes menores. O exemplo para os políticos nacionais, que podiam, por um dia que fosse, descer do pedestal e juntar-se ao povaréu que se entrega ao entusiasmo dos corsos de Carnaval.

Gostava que os políticos continentais se prestassem a esta comparação. Eles, tão ciosos da sua imagem, tão ansiosos pela leitura das sondagens mensais que atestam o grau de popularidade, num putativo barómetro do seu desempenho, teriam nos cortejos carnavalescos o tira teimas da popularidade. E seria, ao mesmo tempo, o escrutínio directo pelo povo, como se os cortejos encimados por suas excelências funcionassem como tribunais da opinião pública mobilizada para aplaudir ou dizer das boas aos políticos disfarçados deles mesmos.

Porventura o Carnaval, como o povo gosta, entristecia-se. Já não basta apanhar trezentos e sessenta e cinco dias por ano com a classe política a pavonear-se diante das câmaras da televisão. Nem no cortejo carnavalesco os foliões se conseguiriam livrar da classe. Não seria caso para esboçar tanta tristeza. Os cortejos de Carnaval espalhados de norte a sul estão habituados a encenar a crítica aos políticos do momento. A sátira popular destila nos corsos, com os gigantones que reproduzem as figuras políticas que dominam o momento. Ora, se os cortejos de Carnaval aproveitam a festividade para lançar as farpas que os políticos merecem, haverá cenário mais idílico do que convocar os políticos em carne e osso para reis e rainhas dos corsos?

Jardim fê-lo durante anos consecutivos. Fazia parte do folclore político do arquipélago. Ano após ano, apostava-se de que iria fantasiado o presidente do governo regional. Nem que fosse para os olhos atónitos ficarem especados diante do grotesco quadro, Alberto João em cuecas. Pode ser um soba, pode ter uma retórica desbragada, pode exalar uma boçalidade que exaspera os finos espíritos das elites lisboetas; nada disto ofusca a popularidade que soube construir, decerto manipulando, decerto jogando cartadas pouco éticas no plano das regras democráticas. Nele louvo a coragem de entregar o peito às balas e ser interveniente na folia carnavalesca que percorre as ruas do Funchal. Que se saiba, não havia manifestações de repúdio.

Por cá, temos aprendizes de Alberto João Jardim. São mais requintados. Fingem praticar a tolerância democrática. Excitam-se quando lêem as últimas sondagens que os colocam nos píncaros da popularidade. Uns fingidores, que simulam políticas com o intuito de manter os índices de popularidade em alta. Impensável imaginá-los a trajar disfarces carnavalescos, participando nos corsos onde seriam figuras de proa. Essa seria a prova dos nove da popularidade (e dos especialistas de sondagens). Corriam o risco de ouvir os impropérios mais desagradáveis, que os atingidos pelas políticas do governo e pelos dislates da oposição estariam na linha da frente, preparados para esgotar o capital de queixumes.

Gostava de ver o primeiro-ministro disfarçado de Pinóquio – ou seja, dele mesmo. O esforço de caracterização não seria muito: era só retocar a protuberância nasal, tão bem retratada no boneco do Contra Informação, colocar o chapéu verde e a roupa juvenil. No carro seguinte, o criador de Pinóquio – Gepetto, o disfarce envergado por Santana Lopes (hipótese número um, à escolha do público). Um Gepetto contristado, porque tendo sido criador do Pinóquio que nos governa, cedo perdeu os cordelinhos sobre o boneco. Ou, hipótese número dois, Gepetto seria o disfarce de Cavaco Silva. Não como criador de Pinóquio, mas como sua figura tutelar, o parceiro estratégico que tem caucionado os passos de Pinóquio, sem se coibir de avisar que está de olho no boneco, preparado para corrigir os passos em falso.

Como acontece à entrada dos estádios de futebol, o povo que fosse assistir ao cortejo seria minuciosamente revistado à entrada. Não podiam entrar objectos cortantes, ovos, tomates, guarda-chuvas, latas e garrafas, qualquer objecto susceptível que pudesse ser arremessado contra os protagonistas do corso. Só poderia usar as palavras como arma: as pateadas, os coros de protesto, os impropérios, à passagem de um Pinóquio sorridente, mentiroso congénito que até a si próprio mente, ali convencido que a zoeira era a turba a exibir agradecimento pelo homem providencial que desfila diante dos seus olhos.

19.2.07

O povo necrófago


Haverá melhor passatempo domingueiro que desaguar em força nas margens de um rio onde jaz, desaparecido, o cadáver de um acidentado?

As famílias em peso descobriram entretenimento macabro para as suas parvas tardes de descanso dominical. Já vai quase uma semana que a automotora da linha do Tua se despenhou ravina abaixo, levando três vidas pelas águas tempestuosas do rio. Dois cadáveres foram encontrados. Um permanece desaparecido. O aparato das buscas é noticiado todos os dias, com o cortejo de botes, helicópteros, brigada de caninos, mergulhadores e bombeiros nas imagens em busca do corpo desaparecido. E temos direito, como bónus, ao funcionário do partido que teve em sorte a sinecura de governador civil de Bragança, nos momentos de glória nacional que jamais voltará a ter.

O povaréu, coçando a cabeça para descobrir onde fazer o costumeiro passeio de domingo, estudou o mapa. De perto e de longe, vieram famílias inteiras estacionar os automóveis na meia dúzia de quilómetros da estrada que desce até à foz do Tua. A estrada é sobranceira ao rio, que navega lá baixo, no fim do vertiginoso desfiladeiro. Um anfiteatro natural para testemunhar as operações de busca. O povinho estacionado diante da desgraça alheia dirá que é a sua manifestação de solidariedade com a família da vítima desaparecida. Estranha forma de solidariedade: sempre a necessidade de a exibir ruidosamente, com a presença carregada de palavras que apenas acentuam o sofrimento dos familiares. Quando o recato e o recolhimento seriam mais sensatos, esses sim no respeito pela dor de quem viu partir um ente querido.

É idiossincrático: o espectáculo espampanante da morte. O povo nem percebe que a oferta de boa vontade espalha uma tremenda dor que se soma ao sofrimento maior de quem é marcado pela morte de um familiar. Diria que a comiseração é a antecipação da morte de cada um: a obrigatória solidariedade, para que na nossa hora sejamos homenageados. Uma correia de transmissão que levita pelo tempo, de falecido em falecido. A morte, que por si chega pelo sofrimento que semeia, é este intemporal rosário de carpideiras – das costumeiras carpideiras que abancam nos velórios, e de todas as outras carpideiras que fogem à modalidade habitual mas espalham o odor tão característico dos funerais.

E depois há uma tendência irreprimível do povaréu: a atracção pelos locais da morte. Onde lhes cheira a cadáveres putrefactos, ou sabem que houve sangue derramado, espalhado pelo teatro violento onde um corpo se fez cadáver, temos a turba em romaria festiva. Não custa a crer que o povaréu tenha feito viagem em direcção às margens do Tua na secreta esperança de ver o corpo desaparecido emergir de uma fraga do rio, boiando com o dorso à mostra. Seria o pináculo de uma tarde de descanso, a sobremesa ideal para o repasto em família. E se há alturas em que apetece dar corda ao espírito de contradição, este é um desses momentos: apetece dizer, bem feito que o infausto homem não apareceu na tarde de ontem.

Porventura sociólogos, antropólogos e psicólogos têm explicações para o comportamento das massas, na sua incompreensível atracção pelos cadáveres. Nunca hei-de esquecer quando num fim de tarde avançava lentamente numa fila de trânsito, até descobrir dois carros que se tinham enfaixado um no outro. E de escutar, estarrecido, um protótipo do povo merdoso a dirigir-se para a família que o esperava dentro do carro, dizendo: “não vale a pena, nem tem sangue”. Este povo merdoso, necrófago, que exala uma falaciosa solidariedade pelo sofrimento de quem se despede da vida. Falacioso, pois no fundo tudo o que este povo medíocre deseja é ser abutre do sofrimento alheio, debicar com a sua grotesca curiosidade o estado terminal de quem se encontrou com a morte.

Conseguirá a gentinha dormir em descanso depois do festim macabro de que foi espectadora? Não a assalta uma poderosa insónia que afasta o sono para outras latitudes? É nestas alturas que percebo como o povo tanto gosta de sarrabulhos, cabidelas, enchidos com sangue, filmes de terror. Talvez sem o saber, o animal preferido deste povo desaustinado é o abutre.

16.2.07

Este mundo, só de gente bonita


Pelo menos a crer no mundo retratado pela publicidade. Os anúncios são uma passerelle de homens e mulheres deslumbrantes. Só eles têm lugar nas imagens que passam diante dos nossos olhos, como se os produtos anunciados viessem embelezados pelos atributos físicos dos jovens modelos que nos olham com aquele olhar misterioso que, afinal, revela o embuste da encenação.

Há um aspecto curioso nesta moda: porventura guiados por um ímpeto de igualdade de género que se enraíza entre nós, os publicitários deixaram de servir meninas esculturais como oferenda única dos anúncios. Agora chegou a vez dos modelos masculinos, que passeiam os seus bíceps musculados e melenas efeminadas em spots publicitários de produtos que têm as mulheres como alvo. Há que diluir os últimos vestígios de superioridade masculina. Espera-os um entusiasmado aplauso pela destruição de um reduto do marialvismo luso.

O que me deixa inquieto é sermos convidados, através desta publicidade que tece loas à beleza humana, a ficar aprisionados da fatuidade estética. Apetece, por um instante, dar para o peditório dos líricos que se insurgem contra o materialismo humano que conquista terreno. E perguntar se acaso os publicitários não conseguem encontrar outra imaginação, para não formatar o espírito humano à dependência da beleza física – como se apenas a beleza física interessasse, na desvalorização da essência interior das pessoas. Sem surpresa: este tipo de publicidade encaixa-se na tendência impregnada entre nós, pois os olhos comem mais que a barriga.

E também fico apreensivo porque o desfile imparável dos atributos físicos das personagens da publicidade atira-nos para um mundo idílico, onde se passeiam corpos esbeltos, caras pontuadas por uma beleza esplêndida. Cenários que não passam de ilusões. Os olhos atentos à realidade denunciam o embuste. Os exemplares dessa beleza não existem, ou vagueiam numa qualquer dimensão reservada ao escol dos belos. Nós, os feios deste mundo, tropeçamos uns com os outros. E aqueles que se martirizam com a feiura que lhes foi destinada, sonham com o que tanto gostariam de ser fosse a justiça divina providencial na distribuição de atributos físicos. A publicidade actua como móbil onírico: quando se desligam da terra, fazem de conta que são como o modelo tão belo que aparece naquele anúncio de que não se cansam.

Há sempre um lado positivo. Neste caso, para os modelos que encontram um sucedâneo das passerelles onde desfilam as últimas invenções dos criadores de moda. É o nirvana para estes modelos, que se desdobram por afazeres mil, entre mais um desfile feérico de moda e a gravação de um spot publicitário ou uma sessão fotográfica para uma campanha de publicidade. São os novos heróis públicos. As suas caras que exalam toda a beleza aclamada, os seus corpos imunes a adiposidades, as curvilíneas formas delas (quando mesmo a esquálida beleza que convida as aspirantes à deriva anoréctica), são as novas matérias-primas aclamadas. Se é a coisificação do corpo humano, parece-me evidente. Se corresponde ao embrutecimento dos destinatários, quando caem no engodo e ficam extasiados perante a orgia de beleza que se descerra diante dos seus olhos, é tese que também subscrevo.

Nunca como por estes dias há um mundo de sonhos que entra pelos olhos através da publicidade. Não tenho nada contra a matéria onírica. Podemos sonhar com o que queremos. Já os sonhos encomendados através da formatação da publicidade me perturbam. Pela intrusão no subconsciente das pessoas que ficam com os olhos esbugalhados ao desfile de corpos. De resto, a ilusão atinge os píncaros quando em vez da atenção se prender ao produto veiculado pela publicidade, os olhos se detêm nos corpos e nas faces que se entregam como coisas incorpóreas, deixando de ser meros adereços para serem emproados à condição de protagonistas dessa publicidade.

Fora de redoma da publicidade, há o mundo real, dolorosamente feio. A estética dominante desmente o faz-de-conta da publicidade. Percebo, então, a manobra dilatória dos publicitários: convidam-nos ao refúgio no mundo cheio de predicados de beleza, ilusório decerto, mas tão confortável. O que interessa é cativar a atenção de muitas pessoas, aprisionadas pelo estertor de uma beleza que só existe no imaginário da publicidade. Quanto mais tempo mergulharem no imaginário da beleza deslumbrante, mais tempo a vêm publicidade, maior a tentação para comprar o que é publicitado. Ao mesmo tempo, refugiam-se da fealdade dominante. Uma fuga para dentro de uma muralha onde se resguarda o que gostaríamos de ter, ou de ser. E sabemos o que acontece quando só há mergulho num mundo de faz-de-conta.

15.2.07

O dia dos namorados está fora do sítio


Mas é de propósito. Porque todos os dias do ano pertencem aos namorados. Só o dia de S. Valentim, descoberto pelas conveniências do marketing, devia ser escoltado à prisão de onde os namorados não se podem ver, nem cheirar, nem sequer falar. Se os namorados se entregaram no altar do amor, que provem o seu desamor à convenção que inventou o dia a eles dedicados.

E, no fundo, aquele dia é um dia de toda a gente. Desenganem-se os que olham para o dia de S. Valentim e choram as lágrimas de desamor, por a fealdade interior repugnar a outras almas que vertem o fel de um coração dilacerado. Ou os mais velhos, esquecidos das tórridas paixões que marcaram os anos frenéticos da juventude. Todos pertencemos aos namorados: porque de alguém, ou de qualquer coisa, teremos que estar enamorados. Senão estamos já mortos, ou vegetativa vida se apoderou de nós. Seja a volúpia de uma paixão momentânea, tão fugaz como os instantes que se esgotam fosse o mundo terminar amanhã. Seja o amor sedimentado, já sem fulgor para êxtases juvenis. Seja até os que cultivam o narcisismo, decerto apaixonados pela beleza que o espelho respira quando estacam longos períodos à sua frente. Ou os que se entregam a causas, um verdadeiro sacerdócio interior. Todos, sem excepção, são namorados.

É um engano devotar o dia dos namorados aos casais que se passeiam de mão dada colhendo a brisa do rio, enquanto fitam o horizonte que tece os planos para a vida idílica que jamais irão viver. Há na mercantilização dos espíritos enamorados um engodo, tivessem os laços das pessoas enamoradas um preço a ostentar com a prenda exigida pelo dia de S. Valentim. É a falácia dos dias que comemoram algo: a comemoração esgota, no dia festivo, todo o capital de entrega à causa celebrada. Acontece com o dia dos namorados: nesse dia hasteiam-se as bandeiras do romantismo, arpoa-se a seta do Cupido adormecido nos outros dias, só falta congeminar o enredo de um filme romântico, com as rosas vermelhas que sinalizam amores eternos a passearem de um lado para o outro, ao encontro de quem as vai receber num deslumbramento vão. Nem que seja o único dia do ano em que exercitam a condição de namorados. Um embuste.

Como tenho o mau hábito de andar a contra-ciclo, o texto alusivo teria que ficar para o restolho de S. Valentim, quando as pétalas das rosas vermelhas esvoaçam, esquecidas, pelo chão da casa, ou os quartos de hotéis acordam para receber os casais que na véspera ciciavam paixões vertiginosas e ao pequeno-almoço já surgem sem a maquilhagem artificial do 14 de Fevereiro – apenas pessoas normais, de olhar frio, contorcendo-se mentalmente para os afazeres do dia que falam mais alto que o feixe que os havia trazido numa celebração afinal fátua.

Os outros dias é que são dos namorados. É nos outros dias que pequenos gestos arquitectam uma cumplicidade que fala mais alto que mil poemas em loas de amor. É nos outros dias que fazem sentido as palavras que musculam o amor. No dia dos namorados, é tão fácil dizê-las! Os ouvidos estão sintonizados nessas palavras que ecoam o romântico que navega pelo interior dos apaixonados. Dizê-las a meio de Maio, ou numa manhã brumosa de Novembro, ou num enlevo intenso descodificá-las num poema bravio, essa é a arte que nenhum dia dos namorados consegue irradiar. Nesse dia, o que seja dito, os gestos raros, as doces palavras registadas – em tudo, actos impuros pela falácia do que está convencionado. É nos outros dias que o sentimento que abraça os namorados se cimenta, com os gestos de ternura que se esgotam em intensos mas breves segundos, a sintonia que magicamente se constrói entre duas almas que vão ficando gémeas.

Passam os anos. Há, em cada dia vivido a dois, um pequeno nada para descobrir. Quando o amor se ancorou com solidez, esses nadas que vêm das profundezas são fragmentos a juntar ao amor que assim cresce. Porque, ao acordar, o bom dia que se dá e se recebe é diferente da saudação às outras pessoas. E andamos compassados, como se houvesse uma bússola secreta que nos atrai em uníssono. Pode ser ao longe, com a mediação da lua que é penhora dos pensamentos em ti ao deitar. Ou ao meu lado, a escutar o palpitar das tuas veias, quando te aconchegas no meu corpo para derrotar o frio invernal. Ou quando nos cruzamos à distância, sem estar o tempo inscrito para esse encontro, só pela surpresa de te encontrar. É nesses momentos que vejo a sagração dos namorados. É neles que falamos um idioma que só nós entendemos. Como se o mundo, subitamente, se encolhesse ao lugar onde confluímos. E nada mais existisse.

Podem os arroubos iniciais andar adormecidos. O tempo é fautor das dormências do espírito. Não, não é comodismo. Nem sequer monotonia. É um sentimento que atingiu a maioridade. A prova é que escolhemos os dias que emproamos como dia dos namorados. Cada beijo, cada singelo afecto, o sentir a alvura da tua pele, ou recolher-te no meu regaço; e as confissões que só tu ouves, as angústias que partilhas, até o mau feitio que aturas; tudo isto é o património dos milhares de dias dos namorados que já vivemos, e dos milhares que haveremos ainda de sorver.

14.2.07

Elefante em loja de porcelanas


A melhor metáfora para caracterizar a antítese de um diplomata. Quando se exige tacto, delicadeza, quando há corredores estreitos pejados de peças de porcelana com uma textura frágil, só os passos precisos, bem medidos, cirúrgicos, se aprestam a percorrer o caminho sem estilhaçar uma porcelana que seja. É uma provação: pelo caminho apinham-se as peças que são o oposto da estética, apertam-se junto aos cotovelos que se encolhem para não incomodar a passividade das porcelanas. Espera-se que o artista vá por ali fora, pé ante pé, esgueirando-se furtivamente entre os milímetros que separam o corpo que serpenteia entre as frágeis peças emproadas em capitéis finos.

É aqui que a metáfora do elefante e da loja de porcelanas sobe ao imaginário. E apenas ao imaginário, porque não se consegue ver o mastodonte a percorrer os corredores estreitos sem se encostar tragicamente à primeira peça de porcelana. Às vezes sinto-me como um elefante em loja de porcelanas. Quando há palavras entoadas, palavras desastradas ouvidas por quem menos as merece.

É um processo vertiginoso. Uma pulsão imparável. As palavras desastradas escapam-se da boca sem nada haver para as travar a tempo. Uma sensação indizível: à medida que as palavras vão sendo ditas, apenas a inocência de quem se entrega no crivo da espontaneidade. Não há maldade, nem intencionalidade de magoar a pessoa que as escuta. E, no entanto, depois de ditas fica a imediata sensação de como são envenenadas palavras. Percebe-se logo pela reacção atónita da pessoa que as ouve, olhos esbugalhados, não acreditando que fui capaz de dizer o que disse. Há ali um instante fatal: entre as palavras proferidas e o segundo imediato, percebendo que foram as palavras menos ajeitadas – as palavras erradas, no momento errado, para a pessoa que merecia outra consideração.

De nada adianta o recato mental, o hábito de medir bem as palavras antes delas serem ditas. Acredito que todos fomos, uma vez na vida que seja, apanhados nesta armadilha. E no arrependimento imediato de ter soltado as palavras destemperadas. O pior é quando vem a tentativa de corrigir o que acabou de ser dito. O povo chama a isso uma emenda pior que o soneto. Das primeiras vezes em que caí na armadilha das palavras impensadas tentei emendar a mão. E como percebi que desdizer era um réplica ainda mais devastadora que o abalo telúrico inicial, das vezes seguintes fiquei pelo silêncio comprometido após ter escorregado para o dislate das palavras desajeitadas.

Há diferenças pelas pessoas que escutam as palavras traiçoeiras. O diagnóstico piora quando os ouvintes mal nos conhecem, ou com eles existe pouca intimidade. Quando o elefante pisa os estilhaços da porcelana tombada, o espectador esboça a reprovação pelo descuido. Não será a melhor maneira de ancorar reputação – sobretudo quando as palavras escorregam para fora dos trilhos e isso acontece no primeiro contacto com alguém. Uma primeira impressão negativa deixa mossas. Demorará mais tempo até a outra pessoa resgatar a confiança ferida com aquelas palavras estouvadas.

Quando o conhecimento é de muitos anos, quando os laços se estreitaram de há tempo, o elefante tem outro capital de perdão. Pode a tromba dançar de um lado para o outro, varrendo a colecção de porcelanas à sua passagem, com o som estridente dos cacos que se estatelam no solo; podem as palavras arranhar os ouvidos de quem as escuta, soar a agressivas mensagens que trazem o travo amargo do embaraço. O capital de confiança enxagua as palavras assim ditas. A antiguidade dos laços traduz a condescendência. Nem a estranheza das palavras, ditas por quem foram, acentua a decepção. Gosto, ao menos, de pensar que as pessoas que não merecem escutar os meus deslizes assim reagem. Apazigua-me saber que assim reajo quando sou o destinatário dos elefantes que entram no meu jardim e espezinham todas as flores plantadas. O que não chega para afastar a perturbação pelas palavras que já foram ditas e escutadas por quem menos as mereceu ouvir. Só apetece ter ao alcance uma borracha que viesse apagar aqueles demorados segundos das palavras aselhas.

Não há-de ser grande o mal dos deslizes semânticos. Não são ofensas, não há sequer razão para a desconsideração pessoal de quem as escuta. No fim de contas, são palavras que agridem mais quem as diz.

13.2.07

Desconcertante


Na larga praça os olhares invisíveis cruzam-se. A mulher de meia-idade a correr para o autocarro que ameaça zarpar. Afogueada, esforça-se por levar as adiposas carnes até ao transporte público, que acaba por rumar à próxima paragem deixando-a, desconsolada, a carpir o atraso garantido. Pelo caminho quase atropelava dois adolescentes que tinham acabado a jornada de aulas. Com os auscultadores enfiados nos ouvidos, a gritaria da música que lhes traz um turbilhão de paisagens sonoras, enquanto vagueiam pelas ruas a caminho de casa e dos jogos onde se ensaiam mortes simuladas e se destila toda a violência que aprendem só por estarem de olhos abertos.

Mais ao longe, ao pé do beco escuro, os gatos remelosos esgueiram-se entre as pernas céleres dos transeuntes. Pressentem que a velhinha andrajosa já fez a visita diária, com a muda de água e o fornecimento habitual de comida. Estes gatos não andam ao lixo, empoleirados entre a imundície em demanda dos restos alimentares rejeitados pela abundância humana. Só às vezes são vistos em fuga com os restos do peixe na boca, até ao esconderijo onde devoram o manjar acidental. À noite, dão de caras com o vigilante da fábrica, o mal-encarado e sempre mal disposto homem do pescoço largo que faz a ronda. Já tentou afugentar a colónia de gatos com a sua especialidade: a violência, uns pontapés esboçados, sempre com a desdita de atingirem o vazio, que os gatos escapulem-se entre as pernas do gordo homem.

Pela alvorada, o segurança entaramela os olhos com o sono que se abeira. Espalha-o, contudo, com a luz do dia que irrompe. As pessoas começam a passar, ao início esparsamente, depois com mais cadência. O vigilante esquece-se das janelas da fábrica que batem com fragor sopradas pela ventania que se pôs, esquece-se dos gatos que se esgueiram entre os corredores à procura do esconderijo onde pernoitam o sono diurno. Embevece-se com as pessoas que acabaram de despertar do sono. E inquieta-se com o ar cansativo que muitas transportam por esta fresca hora da manhã. Diria que elas sim passaram a noite na estiva.

Por ali perto, aparca um potente automóvel, com a música bem audível a gritar das potentes colunas hi-fi. Descem três rapazes com cabelos desgrenhados, ainda as forças no auge após uma noite na folgança nocturna. Entram no café, que acabou de abrir as portas. Vêm ao pequeno-almoço e continuam a falar alto, muito alto, como se ainda estivessem contaminados pela música em gritaria da última discoteca visitada. Falam num dialecto imperceptível aos outros clientes, que esperavam o café para evaporar o torpor e embarcar no sacrificial trabalho.

O homem apessoado acabava de sorver delicadamente o café, parando quando o farfalhudo bigode aristocrático sentiu vestígios das poucas borras que nidificavam no fundo da chávena. Imperturbável com a algazarra dos rapazes, destoava do incómodo que outras caras vizinhas não escondiam. Mergulhado nos seus pensamentos, levantou-se, pousou a quantia certa no balcão e saiu, disparando um frio “até amanhã”. O guarda-chuva era a bengala que amparava os passos certeiros. Parou por um segundo, quando escutou as sirenes dos carros dos bombeiros que passaram a uma velocidade nada frugal. Todos pararam, na interrogação interior: “onde seria a tragédia?” Uns instantes de pausa nos trajectos rotineiros, o suficiente para o autocarro que ali passa religiosamente à mesma hora já ter partido.

O homem afidalgado – dir-se-ia não pertencer àquela madrugada tão proletária – tossiu e pôs o chapéu na cabeça. Deteve-se no bulício matinal em seu redor, no mercado de almas que se cruzavam na rua, pessoas reciprocamente indiferentes que apenas comungavam a coincidência dos caminhos acasalados. Muitas viam-se todos os dias, à mesma hora; e continuavam a sua marcha anónima, olhando para todas as outras caras já conhecidas como passaportes de anónimas figuras.

Sentou-se no banco do jardim, bem no meio da larga praça, como se fosse o juiz dos movimentos em seu redor. Os primeiros suspiros da manhã anunciavam um vento frio que penetrava até aos ossos. Puxou a gola do sobretudo, juntou o cachecol ao pescoço, na vã tentativa de obstruir a entrada do frio. Era a hora do charuto matinal, que partilhava em elípticas fumarolas com os desconhecidos que passavam de um lado e do outro da praça. Avançavam os ponteiros do relógio pela manhã. Era como se as portas da cidade se tivessem entreaberto à turba fugidia que pernoitou nos dormitórios. Desaguavam ali à sua frente, nos utilitários enferrujados, descendo dos autocarros aprumados, desfilando apressadamente (que àquela hora parece que toda a gente está atrasada).

Era o começo do dia do velho reformado, o pretexto para matar o tempo a mais que o cansava por fluir tão devagar. Ali ficava, por vezes com o olhar perdido no firmamento, de onde resgatava as páginas, ora doridas ora perfumadas pela alegria, que já só pertenciam ao retrato do tempo que fugira. A mulher de meia-idade saíra do autocarro, encetara o passo acelerado até se perder, outra vez exausta, na rua escondida pela esquina do quiosque. Do outro lado vinha uma velhinha com passo trôpego, carregada de sacolas, falando sozinha no acto contínuo de uma saudável loucura. Ao atravessar a rua, quase embatera de frente com o corpulento segurança da fábrica em apressada fuga para o travesseiro tardio.

Observava, como se de um ritual se tratasse, os passos habituais dos protagonistas daquela praça. Ele e as pombas, hasteadas no alto do semáforo, vigiando a manhã que se descerrava perante a indiferença das pessoas tomadas pela voragem do tempo.

12.2.07

Sim, o referendo está morto


Nem aqui o povo tem razão: nem à terceira foi de vez. Convidado o povo a exercer o poder através do referendo, mais de metade absteve-se. E bem podem os políticos apelar ao melhor da retórica para nos convencerem que o referendo não está morto. Os esforços esfumam-se perante a frieza dos números.

Só tive paciência para aguentar meia hora dos programas de televisão que acompanhavam o escrutínio. Nessa longa meia hora, saltaram-me à vista duas curiosas manifestações: os políticos, com o esforçado Marcelo Rebelo de Sousa à cabeça, a formatarem o pensamento da turba assegurando que o referendo está de boa saúde; e alguns dos adeptos do “sim” e do “não” que sublinharam a elevação da campanha eleitoral e o civismo que reinou no dia das eleições.

Começo pelo fim. Como é possível encontrar elevação no debate numa matéria que exacerba os espíritos, que traz emoções desbragadas à flor da pele de um lado e do outro da barricada? Como é possível dar por garantida a elevação do debate quando todos os dias tropeçávamos em exibições de desonestidade intelectual, quando amiúde adeptos de ambas as causas abriam a boca para soltar o maior dos disparates, elo com uma grotesca ignorância? E mais perplexo fiquei ao ouvir da boca de uma senhora que lutou pelo “não” o aplauso ao civismo do acto eleitoral. Por acaso a senhora estava à espera de tumultos, bofetadas entre militantes adeptos das causas contrárias? A democracia em que vivemos ainda não chegou à maturidade. Daí a confundir-se com um qualquer país latino-americano vai uma distância abismal.

Quanto ao que mais interessa – a sobrevivência do referendo a uma terceira experiência de abstenção maioritária – alguns comentários avulsos. Primeiro, o deleite de ver Marcelo Rebelo de Sousa com uma tremenda incomodidade perante as projecções da abstenção. Sem a tonitruante convicção das suas certezas, lá se foi esforçando em puxar a percentagem de votantes para cima. Ele ia por ali acima – 45, 46, 47, 48% – e só não continuou porque teve que parar para inspirar uma golfada de ar. Fica o aplauso para o wishful thinking de Marcelo Rebelo de Sousa. Nem com os números que caiam em cima da secretária conseguiu discernir que os votantes não tinham ultrapassado 43% do universo de eleitores.

Segunda observação: os políticos (e comentaristas, inevitavelmente de braço dado com a classe política) manifestaram contentamento com a participação no referendo. Com um raciocínio deslumbrante: a abstenção diminuiu dos sessenta em alguns por cento para 57%. Já é mais próximo da fasquia que legitima os resultados de um referendo. Parece que não perceberam o significado dos números. Uma abstenção de 57% traduz-se no seguinte: mais de metade dos eleitores decidiram não escolher. A crueza do número não satisfaz a classe política, que teima que assobiar para o alto quando chega o momento de discutir o significado da abstenção. Pode a abstenção ter diminuído. Não deixa de ser uma vitória de Pirro para os políticos que encenaram este esboço de democracia directa como expediente para a sua desresponsabilização. No rescaldo fica apenas a frieza do número: 57% é mais que 50%. Se isto é uma vitória, ou se representa o sucesso do referendo, apenas mais uma prova da abnegação dos políticos em distorcer a realidade. Sugiro o seguinte: continuem a insistir em referendos, uma e outra vez, sobre as coisas mais mundanas que se possa imaginar. Pode ser que à enésima tentativa consigam obter um referendo com menos de 50% de abstenção.

Se nem à terceira foi de vez, e depois de uma campanha eleitoral que parecia mostrar um grande empenhamento da sociedade civil, o diagnóstico parece nítido: o referendo morreu. Não estamos preparados para o referendo. Porventura o povo exibe a sua atracção pelos totalitarismos que parecem congénitos. A abstenção tão elevada terá múltiplas interpretações. Uma será a de que um número significativo dos eleitores não acredita nas virtudes do referendo. Falo por mim: descontando o facto (importante) de não considerar referendável a despenalização do aborto, não percebo como se pode entregar decisões importantes directamente nas mãos de um povo inculto. Arrisco o rótulo de elitismo inconsequente, arrisco até o isolamento dos que ousam dissidir do politicamente incorrecto. Mas é assim que penso.

Para terminar, outra perplexidade: não consigo perceber como os políticos, em uníssono, tecem loas ao referendo. Através do referendo devolvem o poder ao povo, que se pronuncia através da cruz que inscreve no boletim de voto. O que me causa confusão é ver como os políticos, empossados na condição de decisores numa democracia parlamentar representativa, se demitem das suas responsabilidades. Ou bem que é mais uma incoerência da classe política, ou apenas um fogo-fátuo que procura convencer o povo que, de vez em quando, tem a decisão nas mãos. Por definição, os representantes deviam evitar um método que esvazia os seus poderes. O seu contrário leva a desconfiar que dizem o oposto do que pensam. Sem surpresa: é a arte da ilusão que preenche a carreira dos políticos.

8.2.07

Da ambição à ganância, só um pequeno passo?


Dizem-me que os jovens advogados perderam a noção do razoável. Que abdicaram dos mínimos éticos, desencontrados da decência que no passado já distante sedimentou o prestígio da classe. Hoje vale tudo. Trepam às costas uns dos outros. Corre, à boca pequena, que até tirar olhos é permitido. Como classe, impera uma tremenda hipocrisia: por detrás dos salamaleques andrajosos, espetam cruas facadas nas costas daquele que, minutos antes, fizeram questão que passasse à sua frente numa qualquer porta do tribunal.

Nada me move contra a ambição. É ela que modera o progresso. As grandes façanhas humanas alicerçam-se em actos ambiciosos de alguém. Puros actos individuais, portanto. E só por arrastamento os efeitos se dispersam pelo colectivo. A ambição, essência do individualismo, é pedra de toque do avanço da sociedade. Contudo, às vezes o discernimento cega-se pelo brilho das luzes prometidas pela ambição que já foi alcançada. Façanha atrás de façanha, a fasquia vai ficando mais alta. Perde-se o rasto à moderação; e a ambição confunde-se com a ganância, como a racionalidade cede lugar ao descontrolo de si. Pelo caminho, o individualismo, o salutar individualismo, é possuído por instintos egoístas.

É verdade que a concorrência entre os jovens advogados que procuram consolidar carreira é selvática. Também é verdade que os jovens advogados, deslumbrados com o frenesim da grande cidade, recusam voltar à terrinha que os viu nascer. Seria uma despromoção social. Preferem enxamear o mercado citadino, já sobrecarregado de gente no mesmo ramo de actividade. É um caso típico de excesso de oferta (de advogados) para a procura (de clientes com a justiça à perna). Este desequilíbrio é uma excepção à regra que ensina que a concorrência é sempre salutar. Perante o dilema da sobrevivência que se coloca com dramatismo a muitos advogados em início de carreira, é recorrente a tendência para resvalar para o descaminho da anti-ética. Em muitos casos, mistura-se ambição com ganância e com necessidade de dobrar a espinha dorsal para conseguirem sobreviver.

E os jovens advogados, de golpada em golpada que o seu código deontológico censuraria, transformam um natural instinto de sobrevivência em ambição, que em breve se faz ganância. A uma progressão geométrica: dos cobres que pagam as despesas fixas do escritório e pouco mais; aos primeiros honorários que engrossam a conta bancária à medida que a carteira de clientes cresce. Não faltará muito até que, perdido o norte da decência, se deixam contagiar pela ralé da profissão: oportunistas, aproveitam-se do estado de necessidade de clientes desesperados por terem a espada da justiça a pairar sobre a cabeça. Oportunistas: por levarem couro e cabelo, aproveitando-se do desespero dos clientes – e da sua ignorância.

A ganância faz destes jovens advogados um silencioso carrasco das pessoas a contas com a justiça. Sem que elas consigam perceber as cobaias que são nas mãos dos oportunistas advogados. Sem discernimento, nem conhecimentos, para entenderem que o jovem advogado está pouco interessado em defender os interesses do cliente; a ambição desmedida, chancela da grotesca ganância, desvia o seu olhar para a insaciável sede de açambarcamento material. E se os clientes estão descapitalizados, fazem-se pagar através de bens – carros, apartamentos, consta até que substâncias ilegais aceitam. Só na consciência destes jovens advogados pesará o sombrio cutelo do mau profissionalismo.

Há mais de quinze anos, fazia o estágio de advocacia, passei por episódios destes. Hoje contam-me que o panorama piorou. Com a agravante que a qualidade dos jovens licenciados é mais baixa. Na inversa proporção da ganância com que entram no mercado de trabalho. Fico sem perceber se a raiz do problema está na geração, ou na abundância de profissionais que entretecem um instinto de sobrevivência que, amiúde, cultiva uma gesta de oportunistas sem remorsos. Ou se é apenas a natureza humana a mostrar que a ambição cresce à medida que se saboreiam os triunfos, e em breve se transforma em ganância desmedida.

Por muitas razões não quis ser advogado, terminado o estágio. Uma foi esta: a recusa de conviver com uma classe onde abundam pessoas em quem não se pode confiar um minuto que seja, pessoas que são o expoente da máxima “não olhar a meios para atingir os fins”. E tudo isto me faz questionar se a ambição – em si mesma, salutar – não é uma perigosa avenida que tolda o discernimento e, num passo só, estreita a ponte entre o racional e o ganancioso.

7.2.07

O kitsch deslumbrante



Está vulgarizada a ideia: a parolice campeia entre o povaréu. Saloios que chegam da província e acampam na grande cidade, com ar triunfante. Os novos conquistadores das avenidas largas que se espraiam diante da sua vista. São os emergentes do nosso tempo. Espalham, com os dedos da democrática maioria, a estética dominante. São eles os culpados da ascensão da cultura pimba – que nos chega através da música, mas também da escrita, do teatro.

Uma casta bem pensante zurze da gentalha apimbalhada, destila um cinismo que fermenta peças de um humor memorável. Contudo esquece-se, a casta, de olhar para uma modalidade alternativa de kitsch, uma quase invisível exibição do mau gosto que perfuma o glamour de certas personagens que vegetam como ícones do estrelato social. É o kitsch deslumbrante, que os estratos da high society convencionaram ser o paradigma do bom gosto militante. Chegado a este ponto, impõe-se uma advertência: estou a pisar o terreno pantanoso da estética, onde a subjectividade é palavra de ordem. E também quero que se perceba que a denúncia do kitsch estratosférico não é opção de apaziguamento pessoal com a parolice popular que fere com a sua vozearia desbragada.

Quando tento retratar o kitsch deslumbrante que ciranda entre os estratos inatingíveis da alta sociedade, dois exemplos assomam à superfície: alguma publicidade do Banco Millennium e o advogado Daniel Proença de Carvalho. Com o Banco Millennium é recorrente. Campanha publicitária atrás de campanha publicitária, o banco sinaliza a mensagem que quer tocar no coração (e na afinidade estética) dos endinheirados que vogam (ou aspiram a vogar) na espuma do estrelato social.

O derradeiro exemplo está na campanha bafienta que nos entra, a toda a hora, olhos e ouvidos dentro, em televisões, jornais e rádios. Uma festa que cintila carradas de esplendor social. Dir-se-ia, a nata da sociedade em peso na festança onde jorra o champanhe francês em flutes de cristal delicado. Os senhores, todos em smoking, que a solene ocasião exige fatiota a preceito. As senhoras ostentam luxuosos vestidos com as lantejoulas adejando, num intenso brilho que envia os sinais que estimulam o sistema nervoso dos convivas. Tudo – smokings e cerimoniosos vestidos – engalana o evento, abrilhanta-o com um fascínio invulgar. Uma tribo exclusiva, onde só os eleitos podem entrar. Ao mesmo tempo, o feérico templo onde uma numerosa fila de aspirantes gostaria de entrar, uma vez na vida que fosse.

Depois lê-se, algures num jornal especializado em economia, que o Banco Millennium quer chamar a si 25% dos afortunados que possuem mais de 500.000 euros. E acertam-se as peças do puzzle, que encaixam na perfeição: agora percebe-se a encenação filmada para a campanha publicitária do Banco Millennium. O público-alvo pertence à abastada casta que o banco que atrair. São as mesmas pessoas que convivem em círculo fechado, que frequentam as festas fascinantes onde os senhores passeiam a fátua pose fleumática dentro do smoking e as senhoras tecem capciosos comentários sobre os temas ocos em que são especialistas, lavrando o terreno de onde se erguem na sua feição de alcoviteiras.

Este é o imaginário da espuma fina onde só os eleitos do estrelato social têm lugar. Um lugar cheio de kitsch: os vestidos com as lantejoulas, que à chegada vêm tapados pelos longos casacos de pele de animal verdadeiro; os smokings que vestem de uma indiferenciada maneira os aprumados varões que orquestram as coisas mais importantes desta terra. Os outros são convidados ao sonho, restando-lhes um cheirinho do imaginário. Só para ficarem a sonhar, numa saudável inveja dos felizardos que por lá andam.

Ainda não consegui que me explicassem esta sede de protagonismo social que reproduz tiques importados de outras paragens. Uma terra que sempre foi conhecida – e bem retratada por escritores – como um lugar de abrutalhadas almas; uma terra onde o republicanismo impera; uma terra tão causticada pelo jacobinismo; e, mesmo assim, deslumbrada com os feixes de néon que perpassam os eventos onde a nata da sociedade ostenta a sua condição.

À parte esta incógnita da equação que não consigo resolver, fica a parolice latente inscrita no código genético da nata social. Quando vejo os dois actores que dialogam ensacados no smoking de aluguer, e quando ouço o diálogo mais improvável que os publicitários podiam congeminar, é de Daniel Proença de Carvalho que me lembro. A referência deste kitsch deslumbrante, o exemplo para a tribo que está no patamar inatingível do topo social.

6.2.07

Desidentificar por decreto


(Mote: por putativa influência do jet lag, o ministro da economia seduziu o capital chinês a emigrar até nós. Motivo de atracção: baixos salários. Em vez de dar para o peditório das metáforas mal amanhadas a propósito da idiotice do ministro – e elas foram tantas, quase tantas como o rosário de boutades de Manuel Pinho –, vou ensaiar os efeitos devastadores do episódio na identificação nacional.)

Ensinam na retórica oficial: somos aquilo que sabemos que não somos. Levam-nos à desorientação, com o jogo de espelhos que reflecte a imagem distorcida do que somos quando, sem intermediários, deitamos no divã do psiquiatra. A imagem vai sendo composta: uns pozinhos daquele povo, mais um detalhe de outro povo, e ainda uns salpicos de terceiro povo, numa amálgama que nos reconstrói. Os que conservam a lucidez percebem a encenação: anuncia-se aos quatro ventos, com a voz pomposa das declarações solenes, que somos o que está do lado de dentro de um castelo mirífico, quando pasmamos cá de baixo na contemplação das lustrosas ameias que nem sequer ousamos trepar.

A convivência com o quotidiano é este embuste invisível. A verdade dita-se por decreto, ao sabor das conveniências dos demagogos. A esfera apareceria tingida de cor-de-rosa, se o rebanho fosse todo amansado pelos pastores que propagandeiam as virtudes de um mundo que devia ser cor-de-rosa. Do espaço, o planeta haveria de aparecer todo pintado de cor-de-rosa, terra e mar na monocromia apática que cimenta a abulia. De tanto sermos invadidos pela realidade de pacotilha, até os mais resistentes vão sendo dobrados pelo cansaço. Centímetro a centímetro, pespega-se a convicção do que nos dizem que haveríamos de ser se não tivéssemos a têmpera com que nascemos.

O pior acontece quando um ilusionista vai de visita a paragens distantes e seduz os alienígenas com dons que não se encaixam na verdade a que temos direito para consumo doméstico. As cabeças formatadas disparam em curto-circuito. Habituadas à linguagem solene dos atributos fictícios, ouvem o pastor desmentir o que propala cá dentro. As dúvidas assaltam-nos: estará o pastor doente? Ou foi discurso na linha terminal de manjar bem regado, com o odor etilizado a empestar o entendimento? Ouvimos o chefe da banda a reiterar o desconchavo e destapa-se um dos adágios que o povo profecia: “pior a emenda que o soneto”.

Quando a poeira assenta, damos conta do imenso deserto à volta, sem pontos de referência para dali fugir. Nos ouvidos acostumados à carpideira oficial trina um súbito estampido: afinal não somos que nos convenceram que seríamos. Tanta a desorientação que não chegamos a perceber que a negação da realidade virtual é o retorno ao lugar de partida – à terra firme onde assentam os pés, em vez das nuvens adocicadas que se desfazem em nada quando as tocamos com as pontas dos dedos.

Instruídos para sermos o contrário do que somos, do outro lado do mundo a revelação que fomos demitidos do que não somos. Pungente orfandade, com a bênção do homem que assina os decretos. A desconfiança sobe aos píncaros: de regresso a uma temporária lucidez, deixamos de ser o que nos prometeram que algum dia seríamos; mas não estamos seguros que regressámos à essência pouco simpática que o arroubo oficial queria passar esponja. É um lugar inóspito, aquele em que ficamos depois de negado o oásis que gostaríamos de ser pela trincha da propaganda que atira areia para os olhos. A areia granulada tolda a visão. Para não seguirmos pela incerteza do quarto escuro, entregamos a mão no guia oficial – o mesmo que vende a imagem adorável do que haveríamos de ser algures no tempo futuro. O império dos homens providenciais, sempre cobertos de uma razão insofismável.

Mas eis que a calamidade se anuncia pela voz grossa dos sacerdotes do poder. Anos depois de apiedada condução do rebanho, o pastor descai-se com a inverdade da oficial verdade. Andámos anos a fio por caminhos ínvios. Quando conseguimos escorrer toda a areia dos olhos, o pastor já lá não está nem as explicações devidas. Paira, com uma aura imaculada, sobre todos nós, olhando para baixo com a sua comiseração pelos pobrezinhos que deixou ainda mais órfãos.

Venceu a decepção dos enganos, a uma dolorosa reconciliação com o passado que julgávamos já de funeral feito. O futuro prometido que sentíamos ser o dia de hoje era só um lapso da memória de quem foi além e, olhando para trás, viu o atraso indeclinável. Nunca se vira um sacerdote tão céptico do seu tempo. Nem dano maior à banda de que faz parte. Os simples mortais regressaram ao tempo a que pertencem. Perderam-se as ilusões. Depois de um turbulento período de desidentificação, resgatámos o que sempre fomos sem o auxílio de maniqueístas lentes desfocadas. Bem-haja ao sacerdote dos disparates.

5.2.07

A economia tem que ser inimiga das pessoas?


Eu gosto da economia. Adoro o capitalismo. Aliás, quanto mais esvoaçam abutres zurzindo do capitalismo, apontando-o a dedo como fautor de todos os males que apoquentam o mundo, mais me enamoro pelo capitalismo. Como sistema, o capitalismo é a maior invenção que a humanidade pôde conhecer. O problema é quando os homens põem o capitalismo em funcionamento. Sobretudo quando o encaminham para uma selvática modalidade que só olha ao encanto dos cifrões e se esquece que ao espezinhar as massas dá trunfos de ouro aos seus detractores.

A semana que passou foi fértil em comentários jocosos aos ditirambos nacionais do ministro da economia em terras chinesas. Ou ao jogging espectacular do primeiro-ministro, ladeado pelos seguranças não fosse um meliante chinês reconhecer a pessoa do primeiro-ministro português – da primeira linhagem entre as afamadas personagens internacionais, como é sabido – e cometer um atentado que viria cercear o matinal jogging e estragar a imagem tão bem composta. Entre o caudal de propaganda que a comitiva de jornalistas enviava para a pátria, poucos perceberam o grande disparate da tournée pela China: a promessa do governo português levantar o embargo de armas à China quando, no próximo semestre, ocupar a presidência da União Europeia.

Não fosse notório que a comitiva lusitana cirandava pelo distante oriente puxando lustro aos chineses, numa subserviência podre, e dir-se-ia que a permissão da venda de armas à ditadura chinesa seria a prioridade da presidência portuguesa da União Europeia. O que, a ser verdade, era mau de mais para ser sequer patético. Importa deter o olhar nesta declaração solene. Parece um dote prometido à gigantesca China como maneira de olear as portas que ainda estão fechadas aos interesses económicos nacionais. Eis o sinalagma: para os chineses serem generosos com as empresas lusitanas, o governo deste país vai ser o embaixador da China junto da União Europeia. Melhor se diria que fará as vezes de advogado de defesa da China. Para ser inteiramente rigoroso, advogado do diabo.

A diplomacia económica, versão moderna do realismo das relações internacionais em concubinato com os interesses económicos, tropeça amiúde nestes alçapões. Passa-se uma esponja pelas atrocidades. Ou apenas se desvia o olhar, apelando à memória curta. Às vezes, declarações inflamadas contra países que espezinham os direitos humanos. Outras vezes, um silêncio cúmplice perante atentados do mesmo calibre. Porque interesses mais altos se levantam: não vingasse a lei da rolha que faz de conta que não há – e não houve – graves atropelos aos direitos humanos, e as portas estariam fechadas às nossas exportações. Diagnóstico lapidar: direitos humanos trocados por lucro. E a coerência mandada às urtigas.

É nestas alturas que me envergonho do capitalismo. Verdade seja dita que há aqui uma perversão do capitalismo, ditada pela ingerência dos políticos. Tão generosos são, tão diligentes em franquear as portas aos empresários que se grudam, quais parasitas, a esta fétida diplomacia económica, que o resultado é um capitalismo pornográfico. Não estranhei o silêncio da amansada comitiva de jornalistas que se passeou pela China. Ninguém perguntou pelas insónias do primeiro-ministro (porque ao ministro dos negócios estrangeiros nem valia a pena) se conseguir convencer os parceiros da União Europeia a abdicar do embargo da venda de armas ao sanguinário regime chinês. Não convinha, a pergunta, para não incomodar os tabus chineses.

Ninguém esperava que numa visita destas se falasse em direitos humanos. A China é um gigante que exige muito respeitinho. As oportunidades de negócio são tantas que não se pode melindrar os chineses. Ademais, não é de bom-tom criticar os anfitriões. Mas o recato insinua-se: era escusado ao governo de Sócrates ajoelhar-se tanto perante a China. Tanta vassalagem levanta dúvidas: ou este governo considera que a China é um regime recomendável; ou a diplomacia está só ao serviço dos interesses dos empresários lusos com gula pelo vasto mercado chinês. É aqui que me zango com esta espécie de capitalismo que vive de mão estendida para o processo político. Doença congénita dos empresários. Sinal de que não conseguem andar pelas suas pernas, carentes da eterna muleta do Estado. Isto não é iniciativa privada; é dependência estatal. E nada de capitalismo, a não ser na forma.

No rescaldo, uma mensagem que me entristece. Para os capitalistas portugueses, de braço dado com quem não deveriam andar – o aparelho do Estado –, o lucro justifica o atropelo dos direitos humanos. A economia não tem que ser só a busca pelo excedente. Sob pena do lucro, legado fundamental do capitalismo, entrar para o domínio do satanizado.

2.2.07

“A questão é saber se podemos obrigar as palavras a querer dizer coisas diferentes” (Lewis Carroll)


As palavras encerram os mistérios dos sentidos que lhes queremos dar. Umas vezes, palavras sofridas que escondem lugares onde só as emoções pertencem. Outras vezes, as palavras destilam todo o império da racionalidade – medidas ao milímetro, uma esquadria que roça a perfeição. E, todavia, quando regressamos às palavras entronizadas apetece tudo refazer, como se o autor vestisse agora outra personalidade.

Flúem, as palavras; são como espíritos voláteis, que acordam penhores das diferentes cores do mundo. Destoam as palavras coloridas, quando o pesado céu cinzento parece querer desabar sobre as nossas cabeças. O refúgio está nas palavras cheias de cor, que desmentem o plúmbeo dia tristonho. E dias há que amanhecem soalheiros, há-de pulsar das veias uma vontade indómita de fugir para as arcadas incolores, encerrar a alma nos volúveis caminhos onde o sol não chega a entrar. Servimo-nos das palavras empedernidas, compomo-las com as variantes que põem em cheque o necessário dever de partir em demanda de um arco-íris que rima com felicidade.

Temos as palavras que enchem a boca e se desfazem contra a pele na sua imensa vacuidade. Usamo-las, convencidos que são o monumento da pródiga verve linguista. Ensaiamos textos obtusos, nos umbrais da poética sublime. O adocicado travo que solfeja logo após a ardósia de letras desmaia quando no regresso a tais palavras jorra a decrepitude do criador. Como se o tempo futuro se recusasse reconciliar com o tempo passado; como se alguém tivesse tomado conta do corpo do criador, renegando tudo o que eram páginas dobradas pelo tempo. No temor de revisitar as palavras escritas, elas ficam para sempre emolduradas como retratos imóveis, intocáveis. Sem revisitação caucionada.

Poderia ensaiar-se um outro campo de flores onde vêm repousar as palavras gastas. Gastas de apenas serem escritas. Elas correm o risco de serem banidas se o criador a elas regressa. Ou temperadas com especiarias que tratam da sua adulteração. Por mais que haja trato delicado na coreografia das palavras escritas, o desassossego da perfeição inadiável retoma a centelha da reescrita. Sacrificada a genuína fluência das palavras, assim que o pensamento esbraceja contra uma dura parede de onde saltam fantasmas da impureza. Nem todos os campos de flores seriam o bálsamo aquietador para as palavras desgarradas que eternizam a solidão selvática.

As palavras são os seus próprios espinhos. Arranham com dor, arrancam pedaços de carne quando aparecem com sentidos não queridos pelo criador. É uma traição, intencional ou não, mas uma traição que ensanguenta os olhos cansados do escritor. Ao menos vinga a expiação interior através das palavras que jorram, ora lentas, ora à velocidade estonteante, nem sempre lúcidas.

O pior é quando fermenta uma ideia, uma imagem, quando queremos capturar a intensidade de um sentimento e as palavras não encontram retrato. Aí as palavras são o seu inimigo, uma masmorra que aprisiona o criador que entretece rudimentos no limbo das palavras. Quase sempre excitante, o juízo dos penhores das palavras desprende-se das amarras, de todas as amarras que só a solidão da escrita consegue destruir. É isso: um acto de libertação, a sagração da solidão do arquitecto das palavras; a comunhão com as palavras que escorrem das teclas para o ecrã diante dos olhos é a emancipação desse terrível ermo. E o mergulho noutra tremenda solidão, a que se encerra nas palavras que nunca morrem.

O encantamento transcende-nos: são mais as palavras que os dias que vivemos. Uma miríade inquietante, pelo horizonte que descobre sentidos insólitos para as palavras que dizemos e escrevemos. Figuras de estilo que emprestam a volúpia às palavras. Uma indecifrável codificação que arremete o escritor para o vórtice da solidão. Ensaística, apenas, ou um exercício de distanciamento do leitor. Ou talvez não: apenas a suprema libertação de quem lê as palavras que se entregam aos sentidos diversos. Nunca o destinatário será tão soberano da obra, na reescrita das palavras tratadas.

Há nesta indeterminação uma prisão voluntária do guardião das palavras. Ora as retoma com agrado, ora as renega num abortivo esboço onde não resta sequer uma vírgula de indulgência. O risco maior do resgate das palavras já retidas no tempo: a dor lancinante de regressar às palavras tomadas, ou a dor maior de obnubilar as cicatrizes espalhadas corpo fora, como se houvesse mister de refazer os dias que já se perderam na embocadura do rio.

1.2.07

Espionagem com a chancela do ministério


Não, não vou escrever um conto com as apaixonantes (para os que gostam do género) peripécias de serviços secretos. O nome do ministério que vai ser revelado daqui a umas linhas não é o da defesa, com a espionagem militar que antecipa os segredos do tenebroso inimigo; nem é o ministério dos negócios estrangeiros, com os serviços de informações que entregam cifrados relatórios dando conta das boas e más novas em países distantes; nem tão pouco o ministério da administração interna, que vasculha, com a ajuda dos serviços secretos, a vida de quem se põe a jeito para a intrusão indecifrável do vigilante Estado.

Seriam os principais candidatos a um acto de espionagem. Sem se dar contar, surgem deliciosos episódios que pintam um quadro de espionagem diferente do habitual. A surpresa chega de onde menos se espera: do ministério da educação. Podem os desatentos soltar um “ah!” de espanto. E, de seguida, enquanto coçam a cabeça e deixam de estar boquiabertos, interrogar os seus botões: como pode o ministério da educação participar num acto de espionagem? Os espiados serão os professores que se opõem à ministra? Terá o ministério da educação um serviço secreto por sua conta, para descobrir os podres privados dos activistas que denigrem a imagem da senhora ministra, entregando de bandeja matéria bastante para accionar a coacção psicológica?

O perfume é mais exótico. A nova espionagem patrocinada pelo ministério da educação veio com um inquérito preparado por uma equipa de pedagogos, ou cultores das ciências da educação, como é de bom tom rotulá-los (fazendo-lhes a vontade). A equipa de investigadores passou um inquérito pelas escolas de norte a sul. Entre outras perguntas inocentes, pedia aos petizes para revelarem informação sobre os hábitos sexuais dos progenitores. Ou se tinham sido testemunhas de violência doméstica. Assim se desafiava as crianças a assumirem o papel de delatoras do que se passa entre quatro paredes, no remanso do lar. Há quem seja tolerante com a hipótese dos alunos serem os bufos dos pais que partem a loiça na cabeça das mães; mais bizarro parece o convite à revelação do que fazem os papás enquanto estão entretidos a satisfazer a libido.

Todavia, há que compreender a intenção destes pedagogos. Já alguma tinta correu crucificando os autores do inquérito. Se calhar temos que reflectir com cuidado para as motivações do estudo serem captadas. Há algumas teorias que me ocorrem. Primeira teoria: os investigadores que elaboraram o inquérito são personagens que padecem de uma fobia qualquer, um voyeurismo recalcado que expõe traumas da infância atormentada. Estes pedagogos terão assistido, ainda em tenra idade, aos esfreganços sexuais dos progenitores. E devem achar que a falta de cuidado ou o pudor mal resguardado de um casal doidivanas pertence ao domínio da normalidade. Porventura nunca terão ouvido falar em intimidade.

Segunda teoria: por meias palavras, através do inquérito, os pedagogos passam uma mensagem bem clara às crianças. Os que já espiaram as escapadelas libidinosas dos papás foram desagrilhoados do recato que a sensatez aconselhava. Ao lerem as obnóxias perguntas sobre os hábitos sexuais dos progenitores, as crianças terão soltado as reservas e desnudado o que interessava saber aos autores da pesquisa. Os outros, os que nunca terão espreitado as distracções de lençóis dos papás, retiveram um forte incentivo para os espiarem quando o casal se escapa à socapa para o quarto. Pois se apareceram aquelas perguntas indiscretas que convidam revelações explosivas, os petizes são levados a pensar que é a coisa mais natural darem uma vista de olhos enquanto o papá está em cima da mamã (ou por baixo, ou qualquer que seja a posição).

Terceira teoria: o inquérito é pioneiro ao preconizar uma alternativa de educação sexual das criancinhas. Os tais pedagogos perfilham a seguinte ideia: as crianças devem aprender estas coisas com quem os gerou, isto é, assistindo ao vivo ao desempenho dos papás. Já que têm que passar por um tirocínio nestas artes, que o façam com os melhores actores (perdão: educadores) que podem ter – o pai e a mãe, e não anónimos actores pornográficos que, diz-se, desumanizam o acto.

Quando li pela primeira vez a indignação com a revelação dos pormenores sórdidos do inquérito, fiquei apreensivo. Reforcei o juízo sobre os socialistas caseiros: perigosos fascistas encapotados com a perfídia de invadir a privacidade alheia sob pretexto do avanço da sociedade (ou lá o que isso seja). Retrocedi: nada melhor que uma reflexão mais fria para tirar a limpo a intenção. Aqueles pedagogos estão cheios de boas intenções. Todos lhes devemos um intenso bem-haja pelos inestimáveis serviços que prestaram. Eles sabem sempre o que fazem; andam sempre dois passos à frente de todos nós, comuns mortais a léguas da sua inteligência visionária.