15.2.07

O dia dos namorados está fora do sítio


Mas é de propósito. Porque todos os dias do ano pertencem aos namorados. Só o dia de S. Valentim, descoberto pelas conveniências do marketing, devia ser escoltado à prisão de onde os namorados não se podem ver, nem cheirar, nem sequer falar. Se os namorados se entregaram no altar do amor, que provem o seu desamor à convenção que inventou o dia a eles dedicados.

E, no fundo, aquele dia é um dia de toda a gente. Desenganem-se os que olham para o dia de S. Valentim e choram as lágrimas de desamor, por a fealdade interior repugnar a outras almas que vertem o fel de um coração dilacerado. Ou os mais velhos, esquecidos das tórridas paixões que marcaram os anos frenéticos da juventude. Todos pertencemos aos namorados: porque de alguém, ou de qualquer coisa, teremos que estar enamorados. Senão estamos já mortos, ou vegetativa vida se apoderou de nós. Seja a volúpia de uma paixão momentânea, tão fugaz como os instantes que se esgotam fosse o mundo terminar amanhã. Seja o amor sedimentado, já sem fulgor para êxtases juvenis. Seja até os que cultivam o narcisismo, decerto apaixonados pela beleza que o espelho respira quando estacam longos períodos à sua frente. Ou os que se entregam a causas, um verdadeiro sacerdócio interior. Todos, sem excepção, são namorados.

É um engano devotar o dia dos namorados aos casais que se passeiam de mão dada colhendo a brisa do rio, enquanto fitam o horizonte que tece os planos para a vida idílica que jamais irão viver. Há na mercantilização dos espíritos enamorados um engodo, tivessem os laços das pessoas enamoradas um preço a ostentar com a prenda exigida pelo dia de S. Valentim. É a falácia dos dias que comemoram algo: a comemoração esgota, no dia festivo, todo o capital de entrega à causa celebrada. Acontece com o dia dos namorados: nesse dia hasteiam-se as bandeiras do romantismo, arpoa-se a seta do Cupido adormecido nos outros dias, só falta congeminar o enredo de um filme romântico, com as rosas vermelhas que sinalizam amores eternos a passearem de um lado para o outro, ao encontro de quem as vai receber num deslumbramento vão. Nem que seja o único dia do ano em que exercitam a condição de namorados. Um embuste.

Como tenho o mau hábito de andar a contra-ciclo, o texto alusivo teria que ficar para o restolho de S. Valentim, quando as pétalas das rosas vermelhas esvoaçam, esquecidas, pelo chão da casa, ou os quartos de hotéis acordam para receber os casais que na véspera ciciavam paixões vertiginosas e ao pequeno-almoço já surgem sem a maquilhagem artificial do 14 de Fevereiro – apenas pessoas normais, de olhar frio, contorcendo-se mentalmente para os afazeres do dia que falam mais alto que o feixe que os havia trazido numa celebração afinal fátua.

Os outros dias é que são dos namorados. É nos outros dias que pequenos gestos arquitectam uma cumplicidade que fala mais alto que mil poemas em loas de amor. É nos outros dias que fazem sentido as palavras que musculam o amor. No dia dos namorados, é tão fácil dizê-las! Os ouvidos estão sintonizados nessas palavras que ecoam o romântico que navega pelo interior dos apaixonados. Dizê-las a meio de Maio, ou numa manhã brumosa de Novembro, ou num enlevo intenso descodificá-las num poema bravio, essa é a arte que nenhum dia dos namorados consegue irradiar. Nesse dia, o que seja dito, os gestos raros, as doces palavras registadas – em tudo, actos impuros pela falácia do que está convencionado. É nos outros dias que o sentimento que abraça os namorados se cimenta, com os gestos de ternura que se esgotam em intensos mas breves segundos, a sintonia que magicamente se constrói entre duas almas que vão ficando gémeas.

Passam os anos. Há, em cada dia vivido a dois, um pequeno nada para descobrir. Quando o amor se ancorou com solidez, esses nadas que vêm das profundezas são fragmentos a juntar ao amor que assim cresce. Porque, ao acordar, o bom dia que se dá e se recebe é diferente da saudação às outras pessoas. E andamos compassados, como se houvesse uma bússola secreta que nos atrai em uníssono. Pode ser ao longe, com a mediação da lua que é penhora dos pensamentos em ti ao deitar. Ou ao meu lado, a escutar o palpitar das tuas veias, quando te aconchegas no meu corpo para derrotar o frio invernal. Ou quando nos cruzamos à distância, sem estar o tempo inscrito para esse encontro, só pela surpresa de te encontrar. É nesses momentos que vejo a sagração dos namorados. É neles que falamos um idioma que só nós entendemos. Como se o mundo, subitamente, se encolhesse ao lugar onde confluímos. E nada mais existisse.

Podem os arroubos iniciais andar adormecidos. O tempo é fautor das dormências do espírito. Não, não é comodismo. Nem sequer monotonia. É um sentimento que atingiu a maioridade. A prova é que escolhemos os dias que emproamos como dia dos namorados. Cada beijo, cada singelo afecto, o sentir a alvura da tua pele, ou recolher-te no meu regaço; e as confissões que só tu ouves, as angústias que partilhas, até o mau feitio que aturas; tudo isto é o património dos milhares de dias dos namorados que já vivemos, e dos milhares que haveremos ainda de sorver.

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