Os sentidos são um alçapão. Só quando a queda é amortecida pela desilusão do engodo dos sentidos é que se percebe que ali havia um alçapão. Muitas vezes, a visão é o sacrificial altar onde as decepções vêm rumorejar. Os olhos disparam os sinais nervosos que, depois de descodificados, são o nutriente do logro: aos olhos que se enamoram do festim visual, segue-se o vazio do que se prova a convite irrecusável da vista.
Tantos exemplos do chão falso que os sentidos escondem. Para não resvalar para o obsceno, atenção apenas ao mobiliário que exala design. Os móveis de sala, os sofás, candeeiros e outros adereços incarnam o traço arrojado, a cor da moda que vai mudando (ora o castanho mel, ora o castanho tão escuro que se confunde com o negrume), as formas que se tornam bizarras e questionam a utilidade das peças de mobiliário. Às tantas, temos cadeiras em que ninguém se consegue sentar mais que uns instantes, candeeiros que ofuscam a luz, adereços que só a imaginação do autor decifra utilidade.
Há dias, descobri que até o mobiliário de casa de banho está possuído pela vertigem do design moderno. Na primeira reacção, estranhei. Não será este mobiliário a antítese necessária da estética? De resto, é ali que deixamos os dejectos que o organismo recusa. A casa de banho devia ser um local espartano. Mas há quem faça da casa de banho refúgio diário, por longos minutos, onde se desfolha alguma da literatura remetida para segundas núpcias. Em contraste com as razões que apontam para a decoração monástica da casa de banho, argumentos no sentido contrário: se a casa de banho é um lugar de alívio, o espaço de onde saímos reconfortados, criem-se as condições para a tarefa estar confinada a um espaço (sempre exíguo) que traga aquietação e comprazimento.
O design é palavra de ordem nos utensílios de casa de banho. São as louças que reproduzem formas arrojadas, cores intensas que emprestam um ambiente mais acolhedor à tarefa diária, piaçabas que deviam emparelhar com cadeiras para a mesa da sala ou cortinados com muitas ou poucas cornucópias. Piaçabas em metal, com a lisura das formas arredondadas, timidamente escondidas num canto esquecido da casa de banho. Quando despertam a atenção, apetece manuseá-las, sentir o tacto delicado do metal tratado, como parecem massajar os dedos quando a mão as investe contra a água que borbulha pelo gargalo da sanita.
Haverá diferença entre as esbeltas piaçabas dominadas pelo império do design de interiores e as piaçabas de antanho, um tosco cabo de madeira a encimar umas farripas desalinhadas? Dirão os puristas do design: é a diferença entre o pedigree e o rafeiro. A modernidade que campeia ordena a escolha: o povo, que se adestra aos modismos, embevece-se com as peças redesenhadas pela régua e esquadro dos criadores de mobiliário, emproadas no requinte que hipnotiza a vista e trai os sentidos restantes. A tentação do último grito do design consome-se pouco tempo depois do objecto ser embalado. Um par de utilizações devolve-lhes o anonimato, despromovidas à condição de vulgares peças que convivem com a indiferença diária.
Um moralista teria a sentença preparada na ponta da língua: vivemos cercados por um mundo de ilusões. Aprisionados aos cânones da estética superficial, apascentados pela fina espessura das coisas que se nos oferecem como engodo da vista. Não admira – prosseguiria o moralista – perante a taciturna espuma da frivolidade; só nos interessa a fina camada que reveste os outros, o verniz traiçoeiro que oculta a cepa de que somos feitos. O moralista seria loquaz: é a humanidade a esvair-se de dentro para fora, só restando na crosta delgada que a enfeita.
O moralista não tem razão. Extrapola, em divagações circundantes, entretece elos onde há apenas, e se tanto, coincidências. O moralista perde a razão porque se acha detentor de uma luminosa aura que o põe a adejar sobre os demais, empossado de dons especiais para os ajuizar. O moralista é um tristonho que persegue a felicidade dos outros. Ainda que seja uma estéril felicidade, ou apenas o pretexto que encontra para esconder debaixo do tapete a sua incapacidade para esboçar, sequer, um leve sorriso. Enganado está, porque a vista envia os sinais que são a espontânea decifração das coisas, das pessoas, das palavras.
Onde há espontaneidade não deve ser erguido dedo censor. Comem assim tanto os olhos que venha o espírito a ficar defraudado pela ilusão dos sentidos? Ainda que o seja, assim o ditou o império dos sentidos. Nem que por instantes apenas, os olhos comeram e espalharam o conforto gerado pelo dom da vista. Mais um exemplo da filosofia de vida que sobe à superfície, um hedonismo que vindica os seus dias.
Tantos exemplos do chão falso que os sentidos escondem. Para não resvalar para o obsceno, atenção apenas ao mobiliário que exala design. Os móveis de sala, os sofás, candeeiros e outros adereços incarnam o traço arrojado, a cor da moda que vai mudando (ora o castanho mel, ora o castanho tão escuro que se confunde com o negrume), as formas que se tornam bizarras e questionam a utilidade das peças de mobiliário. Às tantas, temos cadeiras em que ninguém se consegue sentar mais que uns instantes, candeeiros que ofuscam a luz, adereços que só a imaginação do autor decifra utilidade.
Há dias, descobri que até o mobiliário de casa de banho está possuído pela vertigem do design moderno. Na primeira reacção, estranhei. Não será este mobiliário a antítese necessária da estética? De resto, é ali que deixamos os dejectos que o organismo recusa. A casa de banho devia ser um local espartano. Mas há quem faça da casa de banho refúgio diário, por longos minutos, onde se desfolha alguma da literatura remetida para segundas núpcias. Em contraste com as razões que apontam para a decoração monástica da casa de banho, argumentos no sentido contrário: se a casa de banho é um lugar de alívio, o espaço de onde saímos reconfortados, criem-se as condições para a tarefa estar confinada a um espaço (sempre exíguo) que traga aquietação e comprazimento.
O design é palavra de ordem nos utensílios de casa de banho. São as louças que reproduzem formas arrojadas, cores intensas que emprestam um ambiente mais acolhedor à tarefa diária, piaçabas que deviam emparelhar com cadeiras para a mesa da sala ou cortinados com muitas ou poucas cornucópias. Piaçabas em metal, com a lisura das formas arredondadas, timidamente escondidas num canto esquecido da casa de banho. Quando despertam a atenção, apetece manuseá-las, sentir o tacto delicado do metal tratado, como parecem massajar os dedos quando a mão as investe contra a água que borbulha pelo gargalo da sanita.
Haverá diferença entre as esbeltas piaçabas dominadas pelo império do design de interiores e as piaçabas de antanho, um tosco cabo de madeira a encimar umas farripas desalinhadas? Dirão os puristas do design: é a diferença entre o pedigree e o rafeiro. A modernidade que campeia ordena a escolha: o povo, que se adestra aos modismos, embevece-se com as peças redesenhadas pela régua e esquadro dos criadores de mobiliário, emproadas no requinte que hipnotiza a vista e trai os sentidos restantes. A tentação do último grito do design consome-se pouco tempo depois do objecto ser embalado. Um par de utilizações devolve-lhes o anonimato, despromovidas à condição de vulgares peças que convivem com a indiferença diária.
Um moralista teria a sentença preparada na ponta da língua: vivemos cercados por um mundo de ilusões. Aprisionados aos cânones da estética superficial, apascentados pela fina espessura das coisas que se nos oferecem como engodo da vista. Não admira – prosseguiria o moralista – perante a taciturna espuma da frivolidade; só nos interessa a fina camada que reveste os outros, o verniz traiçoeiro que oculta a cepa de que somos feitos. O moralista seria loquaz: é a humanidade a esvair-se de dentro para fora, só restando na crosta delgada que a enfeita.
O moralista não tem razão. Extrapola, em divagações circundantes, entretece elos onde há apenas, e se tanto, coincidências. O moralista perde a razão porque se acha detentor de uma luminosa aura que o põe a adejar sobre os demais, empossado de dons especiais para os ajuizar. O moralista é um tristonho que persegue a felicidade dos outros. Ainda que seja uma estéril felicidade, ou apenas o pretexto que encontra para esconder debaixo do tapete a sua incapacidade para esboçar, sequer, um leve sorriso. Enganado está, porque a vista envia os sinais que são a espontânea decifração das coisas, das pessoas, das palavras.
Onde há espontaneidade não deve ser erguido dedo censor. Comem assim tanto os olhos que venha o espírito a ficar defraudado pela ilusão dos sentidos? Ainda que o seja, assim o ditou o império dos sentidos. Nem que por instantes apenas, os olhos comeram e espalharam o conforto gerado pelo dom da vista. Mais um exemplo da filosofia de vida que sobe à superfície, um hedonismo que vindica os seus dias.
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