A melhor metáfora para caracterizar a antítese de um diplomata. Quando se exige tacto, delicadeza, quando há corredores estreitos pejados de peças de porcelana com uma textura frágil, só os passos precisos, bem medidos, cirúrgicos, se aprestam a percorrer o caminho sem estilhaçar uma porcelana que seja. É uma provação: pelo caminho apinham-se as peças que são o oposto da estética, apertam-se junto aos cotovelos que se encolhem para não incomodar a passividade das porcelanas. Espera-se que o artista vá por ali fora, pé ante pé, esgueirando-se furtivamente entre os milímetros que separam o corpo que serpenteia entre as frágeis peças emproadas em capitéis finos.
É aqui que a metáfora do elefante e da loja de porcelanas sobe ao imaginário. E apenas ao imaginário, porque não se consegue ver o mastodonte a percorrer os corredores estreitos sem se encostar tragicamente à primeira peça de porcelana. Às vezes sinto-me como um elefante em loja de porcelanas. Quando há palavras entoadas, palavras desastradas ouvidas por quem menos as merece.
É um processo vertiginoso. Uma pulsão imparável. As palavras desastradas escapam-se da boca sem nada haver para as travar a tempo. Uma sensação indizível: à medida que as palavras vão sendo ditas, apenas a inocência de quem se entrega no crivo da espontaneidade. Não há maldade, nem intencionalidade de magoar a pessoa que as escuta. E, no entanto, depois de ditas fica a imediata sensação de como são envenenadas palavras. Percebe-se logo pela reacção atónita da pessoa que as ouve, olhos esbugalhados, não acreditando que fui capaz de dizer o que disse. Há ali um instante fatal: entre as palavras proferidas e o segundo imediato, percebendo que foram as palavras menos ajeitadas – as palavras erradas, no momento errado, para a pessoa que merecia outra consideração.
De nada adianta o recato mental, o hábito de medir bem as palavras antes delas serem ditas. Acredito que todos fomos, uma vez na vida que seja, apanhados nesta armadilha. E no arrependimento imediato de ter soltado as palavras destemperadas. O pior é quando vem a tentativa de corrigir o que acabou de ser dito. O povo chama a isso uma emenda pior que o soneto. Das primeiras vezes em que caí na armadilha das palavras impensadas tentei emendar a mão. E como percebi que desdizer era um réplica ainda mais devastadora que o abalo telúrico inicial, das vezes seguintes fiquei pelo silêncio comprometido após ter escorregado para o dislate das palavras desajeitadas.
Há diferenças pelas pessoas que escutam as palavras traiçoeiras. O diagnóstico piora quando os ouvintes mal nos conhecem, ou com eles existe pouca intimidade. Quando o elefante pisa os estilhaços da porcelana tombada, o espectador esboça a reprovação pelo descuido. Não será a melhor maneira de ancorar reputação – sobretudo quando as palavras escorregam para fora dos trilhos e isso acontece no primeiro contacto com alguém. Uma primeira impressão negativa deixa mossas. Demorará mais tempo até a outra pessoa resgatar a confiança ferida com aquelas palavras estouvadas.
Quando o conhecimento é de muitos anos, quando os laços se estreitaram de há tempo, o elefante tem outro capital de perdão. Pode a tromba dançar de um lado para o outro, varrendo a colecção de porcelanas à sua passagem, com o som estridente dos cacos que se estatelam no solo; podem as palavras arranhar os ouvidos de quem as escuta, soar a agressivas mensagens que trazem o travo amargo do embaraço. O capital de confiança enxagua as palavras assim ditas. A antiguidade dos laços traduz a condescendência. Nem a estranheza das palavras, ditas por quem foram, acentua a decepção. Gosto, ao menos, de pensar que as pessoas que não merecem escutar os meus deslizes assim reagem. Apazigua-me saber que assim reajo quando sou o destinatário dos elefantes que entram no meu jardim e espezinham todas as flores plantadas. O que não chega para afastar a perturbação pelas palavras que já foram ditas e escutadas por quem menos as mereceu ouvir. Só apetece ter ao alcance uma borracha que viesse apagar aqueles demorados segundos das palavras aselhas.
Não há-de ser grande o mal dos deslizes semânticos. Não são ofensas, não há sequer razão para a desconsideração pessoal de quem as escuta. No fim de contas, são palavras que agridem mais quem as diz.
É aqui que a metáfora do elefante e da loja de porcelanas sobe ao imaginário. E apenas ao imaginário, porque não se consegue ver o mastodonte a percorrer os corredores estreitos sem se encostar tragicamente à primeira peça de porcelana. Às vezes sinto-me como um elefante em loja de porcelanas. Quando há palavras entoadas, palavras desastradas ouvidas por quem menos as merece.
É um processo vertiginoso. Uma pulsão imparável. As palavras desastradas escapam-se da boca sem nada haver para as travar a tempo. Uma sensação indizível: à medida que as palavras vão sendo ditas, apenas a inocência de quem se entrega no crivo da espontaneidade. Não há maldade, nem intencionalidade de magoar a pessoa que as escuta. E, no entanto, depois de ditas fica a imediata sensação de como são envenenadas palavras. Percebe-se logo pela reacção atónita da pessoa que as ouve, olhos esbugalhados, não acreditando que fui capaz de dizer o que disse. Há ali um instante fatal: entre as palavras proferidas e o segundo imediato, percebendo que foram as palavras menos ajeitadas – as palavras erradas, no momento errado, para a pessoa que merecia outra consideração.
De nada adianta o recato mental, o hábito de medir bem as palavras antes delas serem ditas. Acredito que todos fomos, uma vez na vida que seja, apanhados nesta armadilha. E no arrependimento imediato de ter soltado as palavras destemperadas. O pior é quando vem a tentativa de corrigir o que acabou de ser dito. O povo chama a isso uma emenda pior que o soneto. Das primeiras vezes em que caí na armadilha das palavras impensadas tentei emendar a mão. E como percebi que desdizer era um réplica ainda mais devastadora que o abalo telúrico inicial, das vezes seguintes fiquei pelo silêncio comprometido após ter escorregado para o dislate das palavras desajeitadas.
Há diferenças pelas pessoas que escutam as palavras traiçoeiras. O diagnóstico piora quando os ouvintes mal nos conhecem, ou com eles existe pouca intimidade. Quando o elefante pisa os estilhaços da porcelana tombada, o espectador esboça a reprovação pelo descuido. Não será a melhor maneira de ancorar reputação – sobretudo quando as palavras escorregam para fora dos trilhos e isso acontece no primeiro contacto com alguém. Uma primeira impressão negativa deixa mossas. Demorará mais tempo até a outra pessoa resgatar a confiança ferida com aquelas palavras estouvadas.
Quando o conhecimento é de muitos anos, quando os laços se estreitaram de há tempo, o elefante tem outro capital de perdão. Pode a tromba dançar de um lado para o outro, varrendo a colecção de porcelanas à sua passagem, com o som estridente dos cacos que se estatelam no solo; podem as palavras arranhar os ouvidos de quem as escuta, soar a agressivas mensagens que trazem o travo amargo do embaraço. O capital de confiança enxagua as palavras assim ditas. A antiguidade dos laços traduz a condescendência. Nem a estranheza das palavras, ditas por quem foram, acentua a decepção. Gosto, ao menos, de pensar que as pessoas que não merecem escutar os meus deslizes assim reagem. Apazigua-me saber que assim reajo quando sou o destinatário dos elefantes que entram no meu jardim e espezinham todas as flores plantadas. O que não chega para afastar a perturbação pelas palavras que já foram ditas e escutadas por quem menos as mereceu ouvir. Só apetece ter ao alcance uma borracha que viesse apagar aqueles demorados segundos das palavras aselhas.
Não há-de ser grande o mal dos deslizes semânticos. Não são ofensas, não há sequer razão para a desconsideração pessoal de quem as escuta. No fim de contas, são palavras que agridem mais quem as diz.
1 comentário:
Já é a penitência avant la lettre (Quaresma)?
Sem brincadeira, já Confúcio (penso que foi ele) dizia que há coisas que não se podem retirar quando lançadas: as palavras e as pedras eram duas delas.
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