Há uma sensação estranha que me percorre quando contemplo a imagem do pátrio território tirada de satélite. Ali está o pequeno Portugal, exposto aos olhos de qualquer voyeur que vagueia pelos céus, ou apenas pela fantástica ajuda da tecnologia espacial. Quase como se o país estivesse a posar nu para a fotografia, despojado das vestes que o branqueiam em tudo aquilo que ele é. Sem lugar às operações de maquilhagem, o quotidiano simulacro do país que ansiava ser outrem.
Ensaia-se uma visão da geografia de Portugal vista de satélite: como se assemelha ao perfil de um velho desdentado e, supõe-se, rezingão com a sua desdita. Um velho cabeçudo, pois toda a costa ocidental que vem da desembocadura do rio Minho até ao estuário do Tejo retrata uma farta cachola onde se esperaria que refulgissem avantajadas capacidades de intelecto. E um velho narigudo, por culpa do ponto mais ocidental que a Europa conhece – o cabo da Roca, ali onde a Serra de Sintra se desvanece num promontório. Ou o nariz das velhas alcoviteiras, de braço dado com as não tão velhas que levam longos anos no inacabado tirocínio da coscuvilhice.
As disfunções faciais continuam na caminhada para sul. Debaixo do tremendo nariz jaz uma boca desdentada: o vasto estuário do Tejo, um mar de água doce que se espraia tomando conta das acolhedoras planícies da Lezíria. Visto do céu, é Portugal boquiaberto que se espreita ali no alcantilado lisboeta. O ar de espanto com as promessas eternamente adiadas, sucessivos amanhãs embelezados por cânticos ternurentos que espalham, por dias que seja, a esperança de um devir procrastinado. Se o espírito acordou reluzente pelos sonhos idílicos, os olhos podem fitar a imagem de um Portugal sorridente, desdentado mas sorridente. Pela adversidade somada à paradoxal gargalhada que, olimpicamente, exibe o maior dos feitos lusitanos: uma capacidade inigualável de rir, com os dentes todos à mostra, das desgraças caseiras.
Prosseguem as calosidades faciais que desfeiam o Portugal garboso. A boca entreaberta repousa num queixo protuberante ali para os lados da península de Setúbal. O queixo contorna os precipícios da boca e quase se encosta ao nariz sinaleiro. Parece um porto acolhedor onde o nariz âncora o seu descanso. É um queixo generoso, o vento alísio que doma as aragens agrestes do Atlântico que embatem no nariz exposto. Queixada nutriente dos queixumes que são a voz das carpideiras que habitam em cada uma das almas aqui nascidas. Dá ideia que o avantajado queixo aloja as frustrações acumuladas, as tristezas incontidas, as agruras da vida que se somam ao longo dos anos. Como o colesterol ajeitado em massa adiposa em zonas do corpo traçadas pelo giz do inestético.
Se a imagem deslizasse um pouco mais para o meio do enorme oceano, lá encontraríamos os Açores e a Madeira. Minúsculas massas de terra, assim descobertas a olho de pássaro. Os perdigotos expelidos pela boca desbragada que exala as palavras erradas no momento menos apropriado. A boca que se lamuria todos os dias, ou a boca maldizente num acesso de arrevesada inveja pelo alheio. A raiva indelével que ruboriza a face enrugada, ou apenas o mostruário das cadeias montanhosas estendidas a norte do sistema Montejunto-Estrela. E a pele tão gasta, penhora da ancestralidade pátria, no garbo permanente de quem se diz possuir as fronteiras mais estáveis na geografia europeia. Pele rugosa, nas pedras amontoadas nas serranias a norte, nas fragas que escorregam em precipícios vorazes rumo às tímidas linhas de água que sussurram, escondidas ainda, entre a densa vegetação que nidifica nas margens.
Portugal é, definitivamente, masculino. Dobrado o rio Sado, a costa aplaina-se, abre os braços aos extensos areais onde as ondas do mar vêm estrepitar com o troar enfurecido dos ventos invernais. A costa alisada conhece uma erupção quando o viajante detém a vista no cabo de Sines. Essa vírgula que se desprende da aplanada costa tem as proporções da maçã-de-adão que os corpos masculinos ostentam. Nota-se, porém, caroço nada protuberante, ou a imagem de uma masculinidade héctica, o simulacro dos bravos homens das façanhas imberbes que não passam de ardis para asfixiar a covardia latente.
Em nada a geografia que foi destinada a Portugal o favorece. Ao terminar, a vista faz uma paragem na fronteira do norte, tenta discernir a imagem desenhada pela linha de fronteira. Sugere-se um penteado desgrenhado, os cabelos em pé, sinal de que a lusitana pátria vive afogueada pelo sobressalto perene. Algo vimos que nos assustou, para sempre. Seria um espelho diante do pequeno gigante acantonado nos fundilhos da Europa? A reflectir a imagem do que somos.
Ensaia-se uma visão da geografia de Portugal vista de satélite: como se assemelha ao perfil de um velho desdentado e, supõe-se, rezingão com a sua desdita. Um velho cabeçudo, pois toda a costa ocidental que vem da desembocadura do rio Minho até ao estuário do Tejo retrata uma farta cachola onde se esperaria que refulgissem avantajadas capacidades de intelecto. E um velho narigudo, por culpa do ponto mais ocidental que a Europa conhece – o cabo da Roca, ali onde a Serra de Sintra se desvanece num promontório. Ou o nariz das velhas alcoviteiras, de braço dado com as não tão velhas que levam longos anos no inacabado tirocínio da coscuvilhice.
As disfunções faciais continuam na caminhada para sul. Debaixo do tremendo nariz jaz uma boca desdentada: o vasto estuário do Tejo, um mar de água doce que se espraia tomando conta das acolhedoras planícies da Lezíria. Visto do céu, é Portugal boquiaberto que se espreita ali no alcantilado lisboeta. O ar de espanto com as promessas eternamente adiadas, sucessivos amanhãs embelezados por cânticos ternurentos que espalham, por dias que seja, a esperança de um devir procrastinado. Se o espírito acordou reluzente pelos sonhos idílicos, os olhos podem fitar a imagem de um Portugal sorridente, desdentado mas sorridente. Pela adversidade somada à paradoxal gargalhada que, olimpicamente, exibe o maior dos feitos lusitanos: uma capacidade inigualável de rir, com os dentes todos à mostra, das desgraças caseiras.
Prosseguem as calosidades faciais que desfeiam o Portugal garboso. A boca entreaberta repousa num queixo protuberante ali para os lados da península de Setúbal. O queixo contorna os precipícios da boca e quase se encosta ao nariz sinaleiro. Parece um porto acolhedor onde o nariz âncora o seu descanso. É um queixo generoso, o vento alísio que doma as aragens agrestes do Atlântico que embatem no nariz exposto. Queixada nutriente dos queixumes que são a voz das carpideiras que habitam em cada uma das almas aqui nascidas. Dá ideia que o avantajado queixo aloja as frustrações acumuladas, as tristezas incontidas, as agruras da vida que se somam ao longo dos anos. Como o colesterol ajeitado em massa adiposa em zonas do corpo traçadas pelo giz do inestético.
Se a imagem deslizasse um pouco mais para o meio do enorme oceano, lá encontraríamos os Açores e a Madeira. Minúsculas massas de terra, assim descobertas a olho de pássaro. Os perdigotos expelidos pela boca desbragada que exala as palavras erradas no momento menos apropriado. A boca que se lamuria todos os dias, ou a boca maldizente num acesso de arrevesada inveja pelo alheio. A raiva indelével que ruboriza a face enrugada, ou apenas o mostruário das cadeias montanhosas estendidas a norte do sistema Montejunto-Estrela. E a pele tão gasta, penhora da ancestralidade pátria, no garbo permanente de quem se diz possuir as fronteiras mais estáveis na geografia europeia. Pele rugosa, nas pedras amontoadas nas serranias a norte, nas fragas que escorregam em precipícios vorazes rumo às tímidas linhas de água que sussurram, escondidas ainda, entre a densa vegetação que nidifica nas margens.
Portugal é, definitivamente, masculino. Dobrado o rio Sado, a costa aplaina-se, abre os braços aos extensos areais onde as ondas do mar vêm estrepitar com o troar enfurecido dos ventos invernais. A costa alisada conhece uma erupção quando o viajante detém a vista no cabo de Sines. Essa vírgula que se desprende da aplanada costa tem as proporções da maçã-de-adão que os corpos masculinos ostentam. Nota-se, porém, caroço nada protuberante, ou a imagem de uma masculinidade héctica, o simulacro dos bravos homens das façanhas imberbes que não passam de ardis para asfixiar a covardia latente.
Em nada a geografia que foi destinada a Portugal o favorece. Ao terminar, a vista faz uma paragem na fronteira do norte, tenta discernir a imagem desenhada pela linha de fronteira. Sugere-se um penteado desgrenhado, os cabelos em pé, sinal de que a lusitana pátria vive afogueada pelo sobressalto perene. Algo vimos que nos assustou, para sempre. Seria um espelho diante do pequeno gigante acantonado nos fundilhos da Europa? A reflectir a imagem do que somos.
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