O direito à imbecilidade é um direito inalienável. Diria mesmo, um direito indeclinável. Faria sentido inclui-lo no catálogo de direitos de personalidade que tem crescido nas Constituições dos países de vanguarda. O direito à imbecilidade é um reforço da personalidade que actua em dois sentidos: para quem exibe garbosamente a sua cretinice, que tem direito a ostentá-la; e para os destinatários, que se espraiam no sofá em demoradas gargalhadas perante a exibição de parvoíce.
O que me traz hoje é um exemplo de imbecilidade em estado puro. Para começar, convém pedir a ajuda do dicionário para ter a certeza que, ao empregar a palavra “imbecilidade”, não estou a fazer um uso indevido do vocábulo. Reza o dicionário que imbecilidade é a “qualidade do imbecil”; na sua contextualização psicológica, um imbecil é alguém com “um atraso mental acentuado, entre a debilidade mental e a idiotia, distinguindo-se desta última pela aquisição da linguagem falada e pelo nível mental, que, determinado por testes, se situa entre os três e os sete anos”.
Há algum tempo, tomei conhecimento de uma crónica social, no semanário Sol, de uma personagem que responde pelo nome de Assunção Cabral. Nunca tinha ouvido falar da senhora. Nem sabia que a madame debitava prosas com um elevado teor intelectual, só comparável à espessura dos temas da sua especialidade. A senhora escolheu para crónica da semana os “possidónios” que têm gatos domésticos. Vale a pena pedir emprestadas à dondoca algumas das suas palavras. Garanto que oferecem momentos de humor ímpares.
No seu consultório de etiqueta, escolheu para dissertação semanal uma pergunta colocada pela dona Ana Isabel Lima: “convidaram-nos para jantar em casa de um colega do meu marido que tem dois gatos. Tenho pânico de gatos. O que posso fazer?” Assunção Cabral dá, de seguida, uma lição catedrática de boa etiqueta. “Exija simplesmente que tranquem os gatos”, sentencia a excelsa lente das regras de etiqueta social. Ora temos um primeiro problema. É certo que entendo pouco de etiqueta e salamaleques afins, mas acho estranho que um convidado possa exigir ao anfitrião que faça isto ou aquilo, senão o convidado recusa-se a entrar na casa do anfitrião. Os papéis estão trocados. A dona Assunção Cabral não gostaria, acaso me convidasse para um repasto deslumbrante na sua casa (coisa altamente improvável, mesmo que se desse o acaso de nos conhecermos), que eu exigisse a retirada do jarrão no hall da entrada, ou que as cadeiras da sala não fossem Luís XV. Ou que eu, como convidado, fixasse a ementa do que ela, como anfitriã, ia confeccionar (ou encomendar a uma empresa de catering, hipótese mais provável).
Depois vêm os tiques de linguagem tão caros às pessoas que passeiam a sua superioridade de etiqueta: “os gatos são possidoníssimos.” E a sentença fulgurante: “quanto mais sofisticada for a raça mais pirosos são os donos.” Um enigma! Poderei estar perplexo por ter em casa um gato persa, ou incomodado pela ideia de haver uma relação inversa entre a sofisticação da raça e a “piroseira” do dono. A ideia tira-me o sono: eu, tão “piroso”, apenas porque tenho um gato persa. Quanto a explicações para a relação causal, nem uma palavra. Suponho que por falta de espaço, que a coluna dedicada à dona Assunção Cabral tem palavras contadas.
Segue-se outra pérola, só ao alcance de alguém muito acima da média quando a inteligência dos mortais é medida: “os gatos são também traiçoeiros.” Quando esperava as explicações costumeiras – não conhecem o dono, são agressivos, pouco amigáveis com os estranhos, etc. – veio a justificação mais improvável que alguém, no seu juízo, podia usar. Os gatos são traiçoeiros porque as madames, entretidas no chá das cinco a destilar a língua viperina, sentem “de repente (…) nas pernas aquele calor peludo, absolutamente repelente, e reparamos que a pató da dona olha embevecida para o bichano, sem se preocupar em enxotá-lo. E nós, com vontade de lhe dar um pontapé (…).” De tanto doer a barriga pelas gargalhadas que não consigo reprimir, apenas tenho fôlego para duas observações: aprendi que existe a palavra “pató” (em rigor: o dicionário desconhece-a; mas o problema pode ser do dicionário, que é “possidónio” e “piroso”, para não dizer mesmo “pató”, uma reles criatura que nada sabe de etiqueta); e que a dona Assunção Cabral deve ser frígida, pois não se sente confortável com o “calor peludo” entre as suas pernas.
Depois de perorar sobre a falta de higiene dos gatos, denunciando o mau cheiro que espalham pelas casas – o que revela desconhecimento de causa, pois o gato é inodoro – a cronista social põe uma pedra sobre o assunto: “porque não faz saber com antecedência ao colega do seu marido que ter gatos é definitivamente uma ordinarice indesculpável?” Importa-se de repetir: “ordinarice”? “Indesculpável”? Ó dona Assunção Cabral: continue assim que vai longe. Um dia destes, entra no púlpito onde só conseguem ascender escritoras de alto calibre intelectual, como Paula Bobone ou Margarida Pinto Rebelo. O género está implantado no mercado, é garantia de sucesso e dá generosos lucros em caixa.
O que me traz hoje é um exemplo de imbecilidade em estado puro. Para começar, convém pedir a ajuda do dicionário para ter a certeza que, ao empregar a palavra “imbecilidade”, não estou a fazer um uso indevido do vocábulo. Reza o dicionário que imbecilidade é a “qualidade do imbecil”; na sua contextualização psicológica, um imbecil é alguém com “um atraso mental acentuado, entre a debilidade mental e a idiotia, distinguindo-se desta última pela aquisição da linguagem falada e pelo nível mental, que, determinado por testes, se situa entre os três e os sete anos”.
Há algum tempo, tomei conhecimento de uma crónica social, no semanário Sol, de uma personagem que responde pelo nome de Assunção Cabral. Nunca tinha ouvido falar da senhora. Nem sabia que a madame debitava prosas com um elevado teor intelectual, só comparável à espessura dos temas da sua especialidade. A senhora escolheu para crónica da semana os “possidónios” que têm gatos domésticos. Vale a pena pedir emprestadas à dondoca algumas das suas palavras. Garanto que oferecem momentos de humor ímpares.
No seu consultório de etiqueta, escolheu para dissertação semanal uma pergunta colocada pela dona Ana Isabel Lima: “convidaram-nos para jantar em casa de um colega do meu marido que tem dois gatos. Tenho pânico de gatos. O que posso fazer?” Assunção Cabral dá, de seguida, uma lição catedrática de boa etiqueta. “Exija simplesmente que tranquem os gatos”, sentencia a excelsa lente das regras de etiqueta social. Ora temos um primeiro problema. É certo que entendo pouco de etiqueta e salamaleques afins, mas acho estranho que um convidado possa exigir ao anfitrião que faça isto ou aquilo, senão o convidado recusa-se a entrar na casa do anfitrião. Os papéis estão trocados. A dona Assunção Cabral não gostaria, acaso me convidasse para um repasto deslumbrante na sua casa (coisa altamente improvável, mesmo que se desse o acaso de nos conhecermos), que eu exigisse a retirada do jarrão no hall da entrada, ou que as cadeiras da sala não fossem Luís XV. Ou que eu, como convidado, fixasse a ementa do que ela, como anfitriã, ia confeccionar (ou encomendar a uma empresa de catering, hipótese mais provável).
Depois vêm os tiques de linguagem tão caros às pessoas que passeiam a sua superioridade de etiqueta: “os gatos são possidoníssimos.” E a sentença fulgurante: “quanto mais sofisticada for a raça mais pirosos são os donos.” Um enigma! Poderei estar perplexo por ter em casa um gato persa, ou incomodado pela ideia de haver uma relação inversa entre a sofisticação da raça e a “piroseira” do dono. A ideia tira-me o sono: eu, tão “piroso”, apenas porque tenho um gato persa. Quanto a explicações para a relação causal, nem uma palavra. Suponho que por falta de espaço, que a coluna dedicada à dona Assunção Cabral tem palavras contadas.
Segue-se outra pérola, só ao alcance de alguém muito acima da média quando a inteligência dos mortais é medida: “os gatos são também traiçoeiros.” Quando esperava as explicações costumeiras – não conhecem o dono, são agressivos, pouco amigáveis com os estranhos, etc. – veio a justificação mais improvável que alguém, no seu juízo, podia usar. Os gatos são traiçoeiros porque as madames, entretidas no chá das cinco a destilar a língua viperina, sentem “de repente (…) nas pernas aquele calor peludo, absolutamente repelente, e reparamos que a pató da dona olha embevecida para o bichano, sem se preocupar em enxotá-lo. E nós, com vontade de lhe dar um pontapé (…).” De tanto doer a barriga pelas gargalhadas que não consigo reprimir, apenas tenho fôlego para duas observações: aprendi que existe a palavra “pató” (em rigor: o dicionário desconhece-a; mas o problema pode ser do dicionário, que é “possidónio” e “piroso”, para não dizer mesmo “pató”, uma reles criatura que nada sabe de etiqueta); e que a dona Assunção Cabral deve ser frígida, pois não se sente confortável com o “calor peludo” entre as suas pernas.
Depois de perorar sobre a falta de higiene dos gatos, denunciando o mau cheiro que espalham pelas casas – o que revela desconhecimento de causa, pois o gato é inodoro – a cronista social põe uma pedra sobre o assunto: “porque não faz saber com antecedência ao colega do seu marido que ter gatos é definitivamente uma ordinarice indesculpável?” Importa-se de repetir: “ordinarice”? “Indesculpável”? Ó dona Assunção Cabral: continue assim que vai longe. Um dia destes, entra no púlpito onde só conseguem ascender escritoras de alto calibre intelectual, como Paula Bobone ou Margarida Pinto Rebelo. O género está implantado no mercado, é garantia de sucesso e dá generosos lucros em caixa.
1 comentário:
Eu tenho um cão raçado de coelheiro (podengo). Poderei considerar-me a salvo da sanha da D. Assunção?
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