16.4.25

Claustrofobia

The Cure, “Play for Today”, in https://www.youtube.com/watch?v=5dOANVRy5Vk

Cheira mal, mal de mais, a um passado indecoroso que parece ter sido destinado ao esquecimento por uma História que foi despejada. O ar pesado arqueia-se sobre o dorso cansado de uma espécie que nem aprende nem se arrepende porque finge um desprendimento da História que lhe é conveniente. Por dentro deste ar pesado, como se alqueires de metais pesados entrassem pelas vias respiratórias e tomassem conta das veias, a contaminação da desliberdade. Homens providenciais carregam o peso do futuro com as suas carrancudas fauces, passeando tiques autoritários que crescem em popularidade junto da audiência. 

Pagamos o preço alto da desmemória ou, o que é pior, do revisionismo do passado, depressa condenado a ser um episódio reescrito que merece absolvição de muitos ou a indulgência de outros tantos. A liberdade tornou-se uma canseira. Entrou num remoinho que a conduz, como valor, a um lugar subalterno, perdendo-se vagarosamente o seu paradeiro. Teme-se que esta perda possa ser irremediável.

As opiniões polarizadas cristalizam no palco que ganhou tempo. O lugar dos moderados emagreceu. São ultrapassados pelo vozear tonitruante dos radicais de todas as cepas. A culpa será dos moderados, há quem sugira, porque não responderam aos anseios de muitos e desprotegeu muitos outros. No escrutínio todavia pouco rigoroso, em que as primeiras impressões trespassadas pela frivolidade são o archote que incendeia a lucidez, aos moderados imputam-se os males hodiernos. Os que migraram do espaço moderado para as franjas onde se exacerbam os radicalismos encontram refúgio nos extremos que se amotinaram contra a moderação exaurida. 

Estes são tempos castigados pela claustrofobia. Os erros do presente são a caução para derivas no passado, mesmo que esses passados estejam contaminados pela humilhação dos Homens e tenham dissolvido a dignidade numa peçonha indistinta. O esquecimento subleva-se contra a fatura pesada do presente – diz-se: tantas oportunidades e a pessoa comum fica à margem dos proveitos. Quando os radicais juram fidelidade à democracia, é apenas um truque de retórica. Não se alistam como radicais, disfarçando o radicalismo atrás das cortinas onde projetam a reeducação da democracia. Uma democracia tutelada, contingente, dependente de muitos requisitos que a malbaratam; uma democracia que fraqueja na medida inversa da política musculada que é oferecida como alternativa e que encontra eco em muitos que transigem com a limitação das liberdades. 

Este é um palco puído onde tudo se passa no estertor de uma cortina que não disfarça o tempo baço que nos estrangula. O ar pesado, claustrofóbico, ora anestesia o pensamento dos que candidamente capitulam, ora ferve-o em extravagantes incursões dos que malsinam a moderação. Não se sabe quando será o auge desta deriva demencial. Não se sabe que preço teremos de pagar, entre infâmia, corrupção da dignidade e empobrecimento de espíritos, liberdades cerceadas e, quem sabe?, mortes outra vez por delito de opinião, até que esta claustrofobia se abata sobre nós como sinal da nossa inviabilidade.

Estes são tempos que convocam o diletantismo da humanidade que está constantemente a esquecer-se do que a trouxe até ao presente. O futuro próximo parece estar por conta de um desarmante pessimismo em relação aos Homens.

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