Deftones, “Passenger” (Mike Shinoda Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=SRdZTZE5pOA
As velas assisadas temperam o modo como os destemidos abocanham o mar. Desafiam os desafios, caldeando os medos que apenas pertencem aos que não são do mar. Dir-se-ia: a pesca como arte sobrante, pois quantas são as vezes que os pescadores se fazem ao mar sem ser como último reduto?
Não é ao acaso que os pescadores pertencem aos mares. Muitos seus antecessores tiveram uma última lida fatal e, feitos náufragos, passaram a pertencer ao mar. Este foi o seu túmulo, costurando o protesto dos entes queridos que amaldiçoam o mar por não ter devolvido os corpos.
Quando desembarcam, têm contas a acertar com o tempo. Longas temporadas sem verem terra exacerba as saudades e as necessidades. Concorrem contra o tempo. Não usam relógios. Acreditam que a omissão ajuda a mentir ao tempo. Os pescadores sabem que o tempo conspira contra eles. Duplamente. Como medida que encurta os dias até que voltem a arranjar lugar na vastidão do oceano. E como contingência que desordena a faina e pode ser fatal, se a ira colorir os ventos e uma tempestade aleijar o mar que depois aleija a embarcação.
Por isso, os pescadores fogem dos relógios. Não querem saber do tempo. Abusam dos atrasos: nos almoços com os amigos que ficaram em terra, nos deveres com os filhos e as consortes, nos deveres consigo mesmos: adiam idas a médicos, adiam o seguro de vida que garante a sobrevivência da família se não regressarem da faina, adiam a conversa com o amigo que ficou pendurada por diferenças insignificantes – e voltam até a adiar os adiamentos que vêm de trás. Durante o tempo em que entram em destempo, fingem que não vieram a terra. Parece que se empenharam totalmente aos mares. Só sabem viver no mar.
Se os mercados fossem justos, o peixe mercadejado na lota seria muito mais caro. Para remunerar com justeza os pescadores que dão, com o seu trabalho, todo o peixe que alimenta a gastronomia do lugar e as mesas das famílias. Os mercados e quem a eles recorre seriam a segurança social dos pescadores. Para compensar o destempo de que são vítimas.
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