19.4.24

Atirou a toalha ao chão

Peter Murphy, “Cuts You Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=UrfFHzqGBZI

Atirou a toalha ao chão, como se o chão tivesse culpa. Não fosse o chão estar a dormir e o chão teria acusado a ofensa. Mas o chão, mesmo estando a dormir, sentiu a toalha projetada contra si com uma energia vulcânica. Acordou e, importunado pela dor da toalha, esbracejou um protesto. A toalha atirada contra o chão estava encharcada. Pesava mais. 

A toalha também não foi considerada quando a pessoa a atirou contra o chão. Toalha e chão não foram consultados sobre a consumação do ato de violência. A toalha, depois de aterrar no chão e ficar desarrumada a jazer no chão agredido, esboçou um sinal de protesto. Balbuciou-o, indignada. Assim como assim, a toalha acabara de ter serventia. Enxugara o enfurecido humano depois de se ter banhado. A ira podia ter arrefecido pela ação do banho. Nem assim. 

A pessoa estava cercada pelo chão e pela toalha. O chão, ainda dorido, conspirou com Gaia, a deusa tutelar, para assustar o humano. Gaia inspirou fundo e abanou-se toda para remexer a terra desde as entranhas. O sismo fez tremer o chão. O chão já estava a contar, não se assustou. A pessoa meteu a fúria entre parêntesis, aterrada com o abalo telúrico. Era vingança do chão, com a intermediação de Gaia. A injustiça não podia ficar sem castigo. O tremor de terra era a resposta ao atirar da toalha ao chão.

Faltava a toalha. Despojada no chão entretanto sonoro, a toalha também estava condoída. Para afastar as dúvidas, era só calcular a energia instantaneamente gasta quando a toalha, atirada com o sobrepeso da água que absorveu do corpo da pessoa, atingiu o chão rijo. Ainda atordoada, a toalha jurou represália. Não podia recorrer a uma deusa tutelar, como fez o chão. Pensou interceder junto de Tétis: afinal, o gesto foi violento porque a toalha retinha uma quantidade de água, se não estivesse ensopada a queda no chão teria sido menos pungente.

Tétis, muito sensível à violência gratuita, aceitou a intercessão. À saída de casa, ia o homem a caminho do parque de estacionamento, Tétis fez desabar um dilúvio instantâneo, sem pré-aviso.  O homem, atormentado por outros males interiores que não interessa inventariar, pensou com os seus botões: um homem já não pode atirar a toalha ao chão.

18.4.24

Embargo

Death in Vegas, “Aisha”, in https://www.youtube.com/watch?v=ExLqMBLyWd8

Uma colónia de misantropos fundou uma des-sociedade. Não queriam o óbito da franquia celebrada, mas não se reviam nela. Queriam ter o direito de não terem direitos; recusavam o direito de admissão no grupo estabelecido. Queriam que os deixassem ser patronos da sua própria orfandade. 

A des-sociedade seria uma sociedade esvaziada por dentro. Uma despertença, por mais pretensioso que pudesse parecer. A sociedade impecavelmente organizada podia ficar sossegada: os membros da des-sociedade não se propunham liquidar a sociedade legítima, a formação de um grupo rival não estava nas suas intenções. Nem eram um grupo coeso – como bons samaritanos da misantropia, não falavam uns com os outros, não conspiravam, como grupo, contra os costumes estabelecidos.

Os misantropos não tiveram paz por muito tempo. Os procuradores da normalidade não descansaram enquanto não deram caça aos arquitetos da des-sociedade. Não quiseram compreender as suas intenções. Não aceitavam que houvesse gente tresmalhada. Essa era uma liberdade que não aceitavam.  Uma vez que estavam integrados no grupo, não podiam aspirar à exclusão. A orfandade contrariava a pertença. Os procuradores da normalidade não podiam legitimar a franquia da despertença.

Os misantropos falaram uns com os outros, pela primeira vez. Não se conformavam com a exibição de poder dos tutores dos costumes estabelecidos. Protestaram contra o contrassenso da injunção. Alegaram a contradição de termos: os defensores da liberdade não a podem reprimir, nem que se sirvam de pretextos como os esgrimidos contra os confrades da des-sociedade. Estes não exigiam nada do grupo a que não queriam pertencer. A não ser que reconhecessem o direito de não serem reconhecidos como membros do grupo.

Um tribunal foi chamado a ajuizar o embargo dos confrades da des-sociedade. Sem embargo do direito à liberdade, os juízes ajuizaram que a restrição última é a intenção de despertença. O grupo não pode aceitar a orfandade dos que peticionam a sua exclusão. Temem pelo seu isolamento, pela marginalização que os desprotege. Os misantropos aprenderam que a sua liberdade termina quando exercem o direito a serem misantropos. São membros à força. 

Ao tribunal, só faltou erradicar a misantropia e explicar – como quem é perito em atirar areia para os olhos – que o faria em nome da liberdade.

17.4.24

As coisas feias primeiro

Luscious Jackson, “Naked Eye”, in https://www.youtube.com/watch?v=0NhqN0KcWAE

Primeiro era a noite – os vultos, a sombra estrutural, os pesadelos, a hibernação que escondia o desperdício, o adiamento, o sono como provérbio da fragilidade.

Primeiro eram os rostos indiferentes, as árvores sem paradeiro, os nomes sem significado, a pura especulação das almas apenas aparentemente iguais, um rio com caudal subterrâneo, um jogo de espelhos que apanha as silhuetas em falso, o ardil do fingimento.

Primeiro era a impressão de uma leveza insondável, a matéria-prima da perplexidade, as dúvidas em barda que ficavam órfãs de resposta, a angústia desalinhada nos parágrafos puídos que armadilhavam as mãos, o olhar projetado na penumbra a fazer de conta que era letrado.

Depois vinha o demais. O dia, ao início descarnado, a levantar âncora, deixando a claridade à mercê dos olhares desarmados. Os sonhos afinal poéticos, como vida paralela, um palco encenado como vela alternativa erguida no desdobramento da vida. Os rostos transformados em nomes e os estranhos que perderam essa condição. As árvores mapeadas, sem serem paisagem do anonimato. As almas desiguais sem beijarem a angústia da demagogia. Os corpos reverberados pelos espelhos sem parecerem forasteiros – e as vozes reproduzidas sem soarem às vozes dos outros. 

Depois vinha a antítese do feio. As interrogações que afinal não eram órfãs, convencidas que não supõem uma resposta. A angústia sem serventia, o miradouro de onde se abarca o mundo mergulhado na sua complexa teia. As mãos opulentas com tanto mundo por saber, com tantos dias por haver. A penumbra que não diminuía o olhar.

Aprendíamos que era melhor começar pelas coisas feias, deixando as belas para depois. As almas não alinhadas participam a sua admirável autonomia. São livres, vacinadas contra os sobressaltos que afeiam o mundo de sombras e vultos que tencionam açambarcar a sua liberdade. Não protestam, não exclamam os impropérios gastos que não toleram as fragilidades do mundo exterior. Deixam os dias seguir na sua sucessão astronómica e por vezes ilógica. Elas congeminam a sua beleza interior. Participam na beleza irreparável de um dia.

16.4.24

Saltimbanco

Kim Gordon, “Bye Bye” (at Jimmy Kimmel Live), in https://www.youtube.com/watch?v=h0WzhRUnr0Y 

Eram as arestas do dia que o separavam da inteireza. Sempre teve a ambição de arrematar os dias com a candeia da perfeição. Era uma ousadia, diziam alguns. Para outros, uma loucura. 

Por lugares avulsos, demandava os apeadeiros que não tinham paradeiro. Ouvira dizer, de um velho que aparentava ser sábio, que os mapas foram a pior invenção. Eram piores do que prisões mentais: só tínhamos o espaço delimitado pelos mapas, era como se não houvesse a possibilidade de mapear por fora do mapa. Devíamos – e o velho ergueu o dedo, fazendo condizer a voz com o tom grave – carregar as culpas nos colonizadores e nos que promoveram a cartografia. De acordo com os mapas, não há lugares por descobrir. O mundo de repente fecha-se sobre uma pequena concha. Torna-se mais pequeno do que umas mãos.

O saltimbanco não concordava. Visitara muitos lugares que só vinham no mapa, não estavam urdidos no tear que compunha o astrolábio pessoal. Não queria recordar o drama encomendado para o futuro pelo velho que afinal não era sábio. Os mapas mostravam um espelho do mundo, cada centímetro desnudado exposto ao olhar censório dos descuriosos da geografia. Mas não era essa a medida. Os lugares podiam ser remotos e a lonjura era dissolvida pela proximidade revelada. Essa não era a conta que tinha dos lugares desconhecidos. 

Um dia, contou o número de países. Depois, contou o número de países que estavam marcados no passaporte. Eram tantos os que não tinham entrada no passaporte! Estava longe de ser um saltimbanco (e o passaporte era o seu dicionário). Desenganou-se: o mundo é de um tamanho que ele não consegue absorver nas mãos. A menos que fosse um globo em forma de candeeiro, com a luz acesa a servir de candeia às mãos. 

Não desistiu de ser saltimbanco. Podia não ter o dinheiro para uma volta ao mundo meticulosamente orquestrada para não deixar de fora nenhum dos países inventariados. Ou podia nem ser o dinheiro: o pretexto era a falta de coragem para emalar os pertences e partir atrás dos países que não estavam marcados no passaporte. A empreitada era mais fácil do que julgara. A tecnologia deixa-nos viajar sem sairmos do lugar. Presos a mapas, todos podemos ser saltimbancos. É quando nos libertamos das algemas dos mapas. É quando somos saltimbancos e sedentários.

15.4.24

A família é o que o Homem quiser (ou: às vezes apetece ser de esquerda)

Black Keys, “This Is Nowhere”, in https://www.youtube.com/watch?v=RuB2ktUlsRI

Quando duas liberdades de sinal contrário entram em rota de colisão, o abalo sísmico pode ser colossal. A menos que os tutores das liberdades que se antagonizam percebam o sentido original da liberdade. E percebam que sendo liberdades de sinal contrário podem coexistir. Uma liberdade exerce-se através do reconhecimento e respeito da liberdade de sinal diferente. Se esta condição não for observada, a liberdade de uns tende a sobrepor-se à liberdade dos outros, com danos para a liberdade de todos. Nessa altura, deixa de ser liberdade. Passa a ser uma palavra nua mastigada pelas bocas dos proponentes, sem correspondência com um sentido material de liberdade.

Há dias, deu brado a apresentação pública de um livro (“Identidade e Família”, organizado por Bagão Feliz, Paulo Otero, Pedro Afonso e Victor Gil). A cada vez mais personagem sebastiânica (para certos quadrantes), o ex-primeiro-ministro Passos Coelho, foi convidada para apresentar o livro. Acabou por fazer um comício – uma espécie de prova de vida. Mas o que interessa para este texto é o livro. É um panfleto a favor de uma conceção monolítica de família, de uma orientação sexual restrita, do lugar arcaico da mulher na sociedade e é um manifesto de abjuração de modelos familiares alternativos, de comportamentos sexuais não convencionais, de reinterpretações da identidade de género, atacando o “wokismo” que faz o seu caminho com o patronato de muita academia. 

Começo pelos alicerces das liberdades: os conservadores que contribuíram para aquela obra têm o direito a perfilhar um modelo de família. Não se lhes seja vedado o direito a publicarem as suas posições, que tamanho índex não teria cabimento numa democracia. Estes conservadores serão, certamente, heterossexuais. Arrepiar-se-ão com os transgéneros, com o casamento entre homossexuais (que ainda não digeriram), com a adoção por casais de homossexuais, com a complexidade das múltiplas identidades de género e suas variantes e sub-variantes. Continuam a dedicar à mulher as delícias da lida da casa. 

Até se percebe a iniciativa de publicar um livro que se agarra às saias das sacristias como reação ao que muitos consideram o avanço inexorável do “wokismo” e do que os conservadores entendem ser a destruição de códigos de conduta ancestrais e de um modelo de família que, a seu ver, foi o fermento do avanço civilizacional em que nos situamos. Percebe-se que se insurjam contra o mantra dos “wokistas”, contra os seus imperativos categóricos e o comportamento totalitário que ostraciza, sem direito a contraditório, os que não seguem a dogmática e os que ousam questioná-los.

Eis a minha declaração de interesses: incomoda-me a arrogância dos novos engenheiros sociais e a materialização de uma coutada de irredutíveis. Sempre me causaram espécie os fundamentalismos de todas as espécies. Perturba-me a exteriorização dos imperativos categóricos e a sobranceria com que desprezam quem não os segue e desterram quem os contesta. Não me arrelia o que defendem e os modos de vida diferentes do meu. São a manifestação de uma liberdade que a minha liberdade (acima de tudo, de consciência) me convoca a respeitar. 

Defendo a possibilidade de casais homossexuais se casarem e terem o mesmo direito de adoção que os heterossexuais. Não tenho nada a dizer sobre o que se passa sob os lençóis, que o sexo é matéria de intimidade e da autonomia individual (apesar de alguns conservadores exibirem o patusco apetite de extraírem o sexo à reserva da intimidade, sabe-se lá porquê). Sou indiferente à promiscuidade dos outros, só me custa que a palavra “promiscuidade” tenha uma conotação pejorativa de acordo com as definições canónicas dominantes. Respeito que um homem queira ser mulher e vice-versa, num ato de coragem que devia ser uma lição para a bravura de garganta dos marialvas conservadores. Não consigo entender a perpetuação de desigualdades entre homens e mulheres, nomeadamente as que empurram as mulheres para a inevitabilidade da lida da casa. E se a criatividade humana gerou um viveiro de complexas e fluídas alternativas de identidade de género, quero que a vontade de quem se define de uma certa forma seja respeitada.

Para além do incómodo que me causam os métodos de colonização cultural dos “wokistas” (pela ressonância totalitária), respeito a liberdade de quem tem ideias e opções diferentes das minhas. Esta lição básica de cidadania anda desaprendida: se nos respeitarmos mutuamente, a liberdade de cada um não é acossada. Parece que as liberdades de uns são virtuosas e as liberdades dos outros são subalternizadas.

Se os conservadores se opõem aos métodos e às ideias dos “wokistas” e os acusam de querem destruir a sua visão de família, sexualidade, identidade de género e papel da mulher na sociedade, escolheram um método que não os distingue dos antagonistas. Com uma agravante: leem-se excertos do livro e o que vem à memória é a logorreia de Putin na cruzada moralizadora contra a “decadência ocidental”. Os conservadores arregimentados neste livro não andam muito longe de Ivan Ilyin.

Agora que este livro foi publicado, conservadores e “wokistas” estão no mesmo patamar de repressão da liberdade que atiram para cima dos que não se reveem nas ideias que defendem. Deixaram de se distinguir, a não ser pelo que os divide.

12.4.24

Mestiçados

Air ft. Beth Hirsch, “All I Need”, in https://www.youtube.com/watch?v=kxWFyvTg6mc

O abril que sabe a julho. As portas que se atravessam no caminho das janelas, trazendo para dentro o luar do outono mesmo que seja a vez do estio. As marcas que nunca são registadas, abolidas as denominações de origem. As identidades abominadas para não sermos metidos em cercas e depois nos odiarmos na exata medida da ocupação de espaços delimitados.

O sangue que não é geográfico. Os idiomas que são diferentes mas se traduzem uns nos outros. Os usos que têm diferentes paradeiros e todavia  se acostumam mutuamente. As ameias que deixaram de ser de castelos para serem apenas reservas mentais. As fronteiras porosas que prescreveram. O sentimento de humanidade que atravessa fronteiras, ditando atávicos os hinos e bandeiras. O princípio geral da concórdia se pactuarmos a mestiçagem.

Os mares que se entrecruzam. Os continentes que se fundem uns nos outros pelo braço estendido pelos oceanos. As pessoas que viajam, conhecem-se, inventariam diferentes geografias, idiomas, comidas, usos, pessoas. E como amadurecem num sentimento de comunhão que torpedeia as barreiras desassimiladas. 

Os olhos que são de cores idênticas e os olhares que acrescentam diversidade aos objetos observados. As bocas que falam diferentes idiomas, mas que se entendem por serem titulares de um tesouro comum. O respeito pelos que hasteiam diferenças em relação a nós. Por titularidade do respeito que exigimos dos outros e sem ser apenas por esse cunho oportunista, por mero código de conduta que arroteia a harmonia entre gentes de diferentes latitudes e longitudes. 

Não somos cultores das diferenças como sinal de dissidência. Estendemos os braços aos outros, perguntamos, aprendemos com eles, damos resposta à curiosidade sobre nós. E nunca a afirmação das idiossincrasias é arrogante. Atiramo-nos às diferentes geografias como forasteiros descomprometidos, uma sede tremenda de conhecimento: não há lugar a hierarquias nem preconceitos sobre o cotejo entre o lugar da partida e os lugares de chegada. Mestiçamos, porque somos património comum uns dos outros. Se nos exigirem definição, diremos que a única coisa que odiamos é a beligerância autodestrutiva do Homem, a sua feição execrável de não ter estatura para ser maior.

Mestiçados, mercadejamos o lugar centrípeto da humanidade. 

11.4.24

Dito em dois minutos e dois segundos (short stories #449)

Propaganda, “Duel” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=2B-iLNDwiqY

          Partir do lugar ausente não é prejuízo. Os verbetes do futuro amotinam-se no arrastar do tempo; protestam: o futuro parece uma empreitada sempre adiada, como se não chegasse a haver futuro. Os olhos não mentem. Arrumam os destroços amontoados nas lombadas puídas. Alicerçam as palavras, que não são sábias. A enseada esconde as ilhas. As ilhas que somos, descomedidos no apalavrado medo de falharmos. É uma angústia que não precisa de ser redimida. A preparação metódica para o logro devia fazer parte dos códigos de conduta. A visão noturna não é a congeminação de um eclipse. Não é a ocultação dos luares que ateiam os fogos redentores, os fogos que avivam a alma. A coreografia das luzes e das sombras é uma pauta letrada. Para que a alma não seja refém de hibernações que refugiam as almas na letargia. Não há bravura nos adágios populares. Não há sensibilidade na pele arguta que se encoleriza contra as tatuagens impostas. Não há parcimónia nos gestos loquazes que substituem a gramática das palavras. Azougado o pensamento, atira-se desmedidamente ao caudal iracundo do rio. Precisa de um caudal agitado, para ser agitado de um lado para o outro, continuamente com o sobressalto do naufrágio a ferir o sangue com uma dor abraseada. Se calhar, devíamos ser náufragos só por uma vez. Ou somo-lo sem saber, tantas vezes pelo tempo fora, e nem precisámos de ser embarcadiços. Os olhos tingidos pela insónia açambarcam as sombras que ameaçam colonizar o sangue combustível. A matéria sensível ocupa as paredes limítrofes, deixa na boca o sabor de uma nortada irreparável. A boca é o escanção que freia os fantasmas quando o corpo é atirado contra a falésia. Sem dar conta, vestem-lhe asas. E impera sobre o horizonte, fazendo-o peito que alberga os tempos sem memória.

10.4.24

Não se diga ao cabeçudo para não ser cabeçudo

Hole, “Malibu”, in https://www.youtube.com/watch?v=v0CYB5V9e64

Não é anátema: ele há cabeças grandes, sem ser na expressão literal, a expressão de uma cabeçorra descomunal – a estes também se chama cabeçudos por causa do diâmetro excessivo da cabeça. Há outros, metafóricos, cabeçudos. Os teimosos militantes que arroteiam a teimosia até ao limite, porque preferem despenhar-se no abismo a dar o braço a torcer. 

Os cabeçudos tais já embolsaram a sua pessoal cátedra. Ninguém sabe mais do que eles, ninguém é tão visionário, ninguém tem o passado tão diligentemente inventariado, ninguém tem tão alta perspicácia, ninguém conseguiu tutelar tão invejáveis proezas, ninguém é tão improvável e singular. O cabeçudo não é nada do anteriormente enunciado e, porém, insiste na megalomania e na mentira enredosa. Por dentro do cabeçudo, a realidade navega numa maré que não existe no seu exterior. 

O tamanho da cabeça do cabeçudo é inversamente proporcional à massa cinzenta que hospeda. De tão néscias personagens não se diga que são albergues de sapiência, ou de bom-senso (à falta da anterior) que os safe da risibilidade. Há muito espaço livre na combinação entre o perímetro craniano e a massa cinzenta que nele encontra moradia. A desproporção materializa um espelho virado do avesso: o cabeçudo é tudo, e por exata medida, do contrário do que supõe ser.

Às vezes diz-se, em tom admirativo, “aquele(a) é uma cabeça” (leva sempre ponto de exclamação no final da oração). Até pode ser uma cabeça pequenina, com elevada concentração de cérebro e sua diligente utilização. Estes é que deviam ser os cabeçudos, pois são as cabeças grandes que congeminam o pensamento maior. Emblemas do pensamento concentrado (é o que são). O povo, na diatribe que o suga por dentro, não deu conta da ordem dos fatores autêntica na expressão idiomática que consagrou. Não é cabeçudo o apedeuta que transforma ilusões em realidade. Seria o letrado, o erudito, o adiantado mental que deixa os outros extasiados com tão notável inteligência. Seria, se o povo o reconhecesse.

Este é que devia ser elevado ao púlpito dos cabeçudos. Seria preciso, a título prévio, que a palavra fosse esvaziada do peso pejorativo que arca. Só então, os iluminados que se distinguem como escol aceitariam ser entronizados como cabeçudos.

Só uns cabeçudos é que insistem chamar cabeçudos aos que não são.

9.4.24

Para memória futura: isto não é uma teocracia

Massive Attacks, “Inertia Creeps”, in https://www.youtube.com/watch?v=w3mn7EC-skg

O desfile de padres à paisana (as sotainas envergonhavam, o anátema do conservadorismo já soava de mais) aparentava uma fileira de moralidade íntegra. As suas virtudes açambarcavam os maus vícios dos demais. Os sacerdotes tinham um dialeto que os denunciava (não era preciso ostentarem as sotainas). À boca pequena – à boca pequena, porque os vestígios do salazarismo entranhado recomendavam que não fosse permitida atitude lúdica com assuntos sérios – passava de boca em boca a suspeição de que algum clero se afastava das pregações, dando corpo ao provérbio sobre os privados vícios que não entram no radar dos mandamentos nem no crivo das apreciações. 

Os sacerdotes extraviados dos mandamentos não estavam privados dos vícios impedidos pelos mandamentos. Alguém atirou uma hipótese para o palco: e se o problema estivesse nos mandamentos, por serem atávicos e não reconhecerem que o prelado é feito de homens que são tão homens como os homens fora dos conventos? Foi dito, a propósito da proposição: as lições da História não servem só para doutrinar a humanidade sobre a estultícia da guerra; também servem para pesar os comportamentos e as consequências. Aquela parte ínfima da humanidade com lugar cativo nos concílios não aprendeu – ou não quis aprender – que uma castração triplica a tentação do comportamento proscrito. 

As sucessivas cortinas de fumo e as miragens projetadas pelas sombras hereditárias ajudaram à opacidade. Seguiu-se a solidariedade da casta, a impunidade consentida e o desprezo das vítimas mercê da ignorância a que eram votadas. O imorredoiro medo do inferno da turba desinstruída fez o resto. Os crentes, emudecidos com o pavor da morte encomendada aos demónios, foram as vítimas fáceis do poder assimétrico. A influência dos pastores das almas depressa era confundida com poder sem sindicância. Os pastores das almas, homens como os outros, depressa decaíam nas mesmas fragilidades anotadas aos seguidores. O poder de absolvição, nos pecadilhos quotidianos e no estrutural julgamento feito sobre a urna, transformou humildes pregadores da palavra divina em imperadores das almas. Virados para dentro de si, praticantes de vícios ilegítimos, deitando mão a privilégios (e à sua ocultação) contra os mandamentos e as leis.

A fé fora instrumentalizada pelos seus mentores. Eles, meros homens como os demais, adulteraram a fé, tornaram-na numa dependência de sentido único, retiraram a liberdade do código de conduta, cavalgaram na arrogância do seu doentio egoísmo. A relação passou a reger-se pelo medo, dependência e obediência; pela satisfação dos caprichos não sancionados pelas escrituras que os pastores exigiam sob pena de a absolvição não ser autorizada.

Ainda está por apurar o inventário das almas destruídas pelos pastores das almas.

8.4.24

Quando nos salvarmos de nós mesmos

Kiasmos, “Dazed”, in https://www.youtube.com/watch?v=kdf8dd5k-X0

Não são as luzes que selam as juras contra o futuro. As estátuas ganham vida quando passamos por elas, como se fôssemos nós a avivar as regras que foram perdidas em tempos sem memória; as estátuas são uma promessa de futuro (ou um passado imorredoiro). Toldamos a paisagem com sílabas soltas, infernais, que extinguem a lucidez amanhecida. Não somos fieis depositários da angústia. Não queremos conjugar o verbo que se depõe na finitude do ser.

Podíamos consagrar uma divindade, ou escolher um verso arrebatado (ele há tantos à escolha), ou deliberar sobre o passado ao sujeitá-lo a uma defenestração, ou apenas caminhar até ao mar e ficar a contemplá-lo enquanto decai no entardecer. Não temos consciência da arbitrariedade em que lobrigamos: não somos feitos para sermos imparciais juízes de ninguém, e muito menos no autojulgamento. Os erros colossais estão inventariados e não reivindicam a redenção. Deixaram marcas para memória futura. Se conspiramos contra o futuro, esquecemos o magma de que fomos feitos. Ser adulteração do que fomos integra o rol das possibilidades. Abraçar a diferença não é uma adulteração do eu: temos o direito imprescritível a ser um eu diferente.

Deixamos de fora divindades, as capacidades heurísticas das artes, a peregrinação pelos ideais que tanto tempo gastaram ao pensamento em idealizações sumptuosas e utópicas. Deixamos a falar as vozes que se amontoam no colo do passado, fazemos um apanhado da cacofonia em papel de resumo. É magnífico o direito a fracassar! Os logros embutidos como tatuagens não são expressões vivas de sobressalto: tiveram lugar num tempo que perdeu o horizonte, podem ter deixado cicatrizes sem correção, mas são porta-vozes do direito a sermos frágeis. E essa é uma formidável fortaleza que se encerra dentro de nós.

Das suas mitras pontifícias, cuidadores das almas escrevem compêndios sobre a salvação dos outros. Não somos patronos do nosso amesquinhar, pois concebemos a autoestima espoliada como um narcisismo de sinal contrário (mas narcisismo). Decretamos, para memória futura: temos matéria-prima para nos salvarmos de nós mesmos, mas preferimos ser assim.

5.4.24

Safari

Explosions in the Sky, “Postcard 1952” (live at David Letterman), in https://www.youtube.com/watch?v=kXQd4MJG16U 

As árvores entrançadas, numa trama difícil de esmoutar, apresentam o palco residente. O som parece aturdido pela humidade que conspira com o calor, como se a subida a palco começasse a extinguir o ar que entra nos pulmões. Os sentidos vão a caminho da anestesia (ou assim parece). Um caleidoscópio de labirintos desce sobre o palco. É preciso escolher um. Ao acaso, porque todos parecem iguais.

O labirinto escolhido amplia a inexatidão dos sentidos. As paredes do labirinto fogem ao tato. O chão está constantemente escorregadio. As palavras murmuradas ecoam por todo o lado, parece que há vultos escondidos a povoar o sobressalto. O caminho é feito de armadilhas: espelhos virados do avesso, máscaras que parecem pessoas disformes, palavras que soam a idiomas ininteligíveis, gritos lancinantes desenhados nas paredes do labirinto, o esvaziamento do tempo (há um relógio com os ponteiros quebrados; a lucidez, se a houvesse, diria tratar-se de uma anomalia do relógio, não do tempo). 

De repente, uma janela abre-se e deixa ver uma estrada que dá acesso a uma praia. Num repentismo, salta a janela e exila-se do labirinto. O vento fresco quadra com a liberdade resgatada. Ninguém lhe contou que teve de terçar lutas com feras iracundas para sobreviver no labirinto. Talvez seja a razão para algumas cicatrizes que apura no rosto, nos braços, nas mãos. O vento passa a uivar, também iracundo. O vento traz em si todos os medos colhidos à passagem pelos lugares antecedentes. Sente o peso de todos esses medos. Mas não se intimida. Os medos não o têm como paradeiro. Ele é procurador do desmedo.

A descida abrupta dá acesso à praia exígua, numa falésia que se deita sobre o mar. O vento arrefeceu a sua fúria. Abrigado pelos contrafortes da falésia, é como se tivesse emagrecido, tanto o peso que o arqueava quando lutava contra o vento e que agora deixou de carregar. O mar escolheu a sua cor preferida. Esbraceja umas leves ondas, a querer comunicar com ele. Detém-se à frente do mar, meticulosamente contando as ondas entre a chegada e quando apetecer deixar a praia. Perdeu-se nas contas. Adormeceu, a crer na noite que já ia funda.

Não soube se o sono inventariou os sonhos desarrumados na sucessão de palcos caóticos. A crer nas cicatrizes tatuadas no corpo, a caçada tinha sido intrépida. Às vezes, no colóquio da sobrevivência, ou se mata ou se é morto. Outras vezes, limitamo-nos a observar os adversários. 

4.4.24

Prevaricamos?

Liz Lawrence, “Big Machine”, in https://www.youtube.com/watch?v=l7FgHi0Emc0

Sejamos descidadãos, voltados sobre a rebeldia que nos ferve o sangue, desaprendendo os cânones, postergando compromissos, denunciando as conspirações que se movem contra a liberdade de espírito, dando caução aos dissidentes fartos de tanta normalidade e de verem hasteada a palavra “estabilidade”, assim transformada em valor quando é apenas um meio. Sejamos descidadãos, por antinomia com a cidadania domesticada que nos oferece talhadas de hibernação.

Prevaricamos? Se nos regermos pelos cânones, prevaricamos. Depressa ficamos escondidos na reserva onde se exilam os párias, sujeitos à apóstase decretada pelos lídimos procuradores do estabelecido. Prevaricamos e depressa ficamos sob a alçada da vingança estatuída para os párias sem redenção, só um pouco em falta para serem despojados da nacionalidade. Prevaricamos se somos condenados à apátrida condição, ou se intencionalmente o fazemos para nos ser subtraída a pertença que consta do documento de identificação.

Prevaricamos se mexemos na matéria necrosada que não admite questionamentos. Ainda mais prevaricamos se usarmos a ironia para tirar o pedestal a divindades que se convenceram que assentam em pés de ouro. Como prevaricamos se ofendemos as autoridades com um inocente escárnio, pois há uma casta que não admite ser ridicularizada e desse modo assesta o arsenal contra o princípio da igualdade de que se pavoneia ser embaixadora.

Prevaricamos, apenas porque nos apetece prevaricar. Não escondemos a prevaricação, que não toleramos o interior tatear da alma ungida pela hipocrisia. Prevaricamos, sem máscara instituída (que já chegou o tempo da máscara imposta por decreto). Prevaricamos sem ser à distância, com a falsa coragem de se saber inacessível para a fúria dos visados. A prevaricação com paradeiro certo não procura refúgio das punições cominadas. 

Procuramos novas sedes de prevaricação. Ousamos descobri-las nos lugares mais insuspeitos, nas palavras eruditas que não se salvam de uma salva de escárnio, nos heróis desmobilizados pela usura de deixarem que os entronizem nessa condição, nas malparidas hagiografias que servem para esvaziar pretensiosas figuras em pré-estado de beatificação. Procuramos os alvos da prevaricação até debaixo dos calhaus, em incursões submersíveis, nos céus onde se perfilam os catedráticos de coisas muitas a meias com estrelas cadentes, na arraia-miúda para não sermos acusados de um viés em desfavor dos “notáveis”.

Continuaremos a prevaricar, a menos que a prevaricação se esgote por dentro e seja normalizada, perdendo a sua linhagem de prevaricação. 

3.4.24

O arredondamento das letras grandes

Paramore, “Thick Skull”, in https://www.youtube.com/watch?v=n-3_3fWC1vg

Que pena, o satélite caiu. Já não temos inveja dele. Já não está arqueado sobre nós e não olha com a sobranceria de quem tem vistas privilegiadas sobre o planeta, como o consegue contemplar à distância de um miradouro privilegiado.

O satélite desintegrou-se quando entrou na atmosfera terrestre. Podia-se sentenciar o desfado do satélite: ele que usufruiu, por uma temporada demorada, de vistas invejáveis do planeta, assim que nele entrou ficou sujeito à inveja do planeta que o consumiu, deixando-o em forma de archote. Podia-se estender a sentença: o planeta gostava de sair dos seus pés para se ver de fora de si mesmo. Há muitas pessoas que são acometidas pela mesma angústia.

Os engenheiros que eram os pilotos remotos do satélite diligenciaram um estertor sem danos em vidas e bens. As vidas e os bens (por esta ordem, ó neoliberais!) vão sempre à frente no ranking das preocupações. Quando é preciso fazer arredondamentos, as vidas e os haveres são palavras maiores. Não podem ficar a perder para outros fins, nem ser sacrificados numa estulta coreografia de meios que se antepõe aos fins. 

Os engenheiros que pilotavam o satélite à distância deitaram-se com a consciência absolvida. Não podiam fazer melhor. O pobre satélite estava condenado. Os satélites também prescrevem, como as vidas das pessoas prescrevem quando atingem o prazo de validade e a morte tem precedência sobre o demais. Os engenheiros aeroespaciais deviam ter aprendido com a frieza dos médicos. Estes nunca se comovem com a extinção de um paciente. 

Antes de um engenheiro se deitar, a consorte perguntou onde caiu o satélite e se não era possível recuperar os despojos. O engenheiro retorquiu com a localização. “E os restos, não os podem recuperar?”, insistiu ela. O engenheiro teorizou, com a paciência de um lente e a mesma linhagem pedagógica, que ao entrar na atmosfera terrestre a fricção e a velocidade de entrada no planeta condenam o engenho à desintegração. O satélite fica feito em cinzas, que foram cair num lugar remoto entre o Índico e o Antártico. 

“Ainda bem”, disse ela, antes de descansar a cabeça na almofada. “O planeta sabe ser justiça divina. Ele não podia aceitar que um objeto que gravitou na sua órbita pudesse matar vidas e destruir posses.” E o engenheiro aeroespacial caiu num sonho mirífico de quem se sabe recompensado sem, todavia, poder reivindicar as loas.

2.4.24

Manhã-miradouro

Parquet Courts, “Walking at a Downtown Pace”, in https://www.youtube.com/watch?v=0R7wpcw1Z4A

I

Nos arrumos da alma encontra-se um entulho que não espera sindicância. Todo o vento haurido conspira desde o passado, amontoa-se no estertor dos amanhãs desembaraçados. Conspira, com o verbo gasto dos vultos que se sobrepõem à lava arrefecida esgrimida pelo vulcão nativo. 

II

Nos escombros que esperam inventário, alinham-se desordenadamente as máscaras. Não é intendência saber do paradeiro anterior das máscaras: que palcos transgrediram, a que circos se emprestaram, os rostos de que foram disfarces. A apatia condenou as máscaras ao esquecimento. Essa é a serventia dos escombros. 

III

Na noite órfã, o sono perdeu para a rebeldia da insónia. Os patamares ouvem as preces murmuradas nos sonhos. O luar recebe nas mãos as participações da angústia. Os depoentes esperam que a lua seja generosa. Esperam que a lua enxague a pele torturada pela angústia. 

IV

As casas avistam-se desde a cumeada, estão longe. Iluminadas pela luz pública que ainda não desacompanhou a noite. O casario dava para palcos variados, por poucas que sejam as almas habitantes. A neve tardia arrefece o sangue dos aldeões, exilados no conforto das lareiras. Joga-se o tempo contra a malha da Primavera que é cúmplice do Inverno. O frio demove a participação na rua. A aldeia é um ermo. Em uníssono com a velhice média dos aldeões. 

V

O casal de idosos entrelaça as mãos enquanto o pequeno-almoço tarda. Permanecem em silêncio, os olhares de cada um tomando destinos diferentes. As mãos antes frias começam a aquecer. Eles não precisam de palavras. Os dedos que se afagam mutuamente são o idioma que precisam. 

VI

Dizia: “os filhos são os adamastores que arrancamos de dentro de nós, a verdade que nos falta contar antes de sermos reféns do tempo.” Tanto tempo depois, ainda não conseguia perceber se concordava. Os dentes do tempo mordem a noite anciã, como se fôssemos contrariados a caminho da velhice. Suamos nesta biblioteca onde tatuamos o sangue hereditário. O resto, “não fica por nossa conta”. Como se soubesses ser profeta.

1.4.24

O fermento das imagens

Kiasmos, “Flown”, in https://www.youtube.com/watch?v=hRlSzKWasQ0

Tira as algemas dos olhos que impedem que a manhã se emoldure no horizonte. É preciso que amanheçam, imagens e manhã, no palco uníssono onde se amestram as palavras oriente. As mordaças eternizam a noite, deixam-te sem a fala que queres congeminar: se te levarem à mudez, a fala silenciada impede que sejam tuas as palavras que se oferecem como manual de intenções.

As imagens sobrepõem-se ao passarem pelo crivo da tempestade cerebral. Sucedem-se tão depressa que não as consegues domar. Ficas descontente com o esbanjamento. Convencido que irás inventar um ardil para nenhuma imagem ficar à margem da manobra, tornas-te inventor. Inventaste o fermento das imagens.

Agora não te angustias nos dias consecutivos em que sentias que o desperdício de imagens era a prova das tuas limitações. Havia quem te dissesse que os outros também precisavam do fermento das imagens para não te sobressaltares com a incapacidade para vazar todas as imagens que passam diante do olhar. Não te convences com a generosidade. O único cimento que interessa é aquele que usas interiormente, até que o olhar se desloque a uma velocidade supersónica e nenhuma imagem seja discriminada.

O fermento das imagens acelera a capacidade de processamento. Deixas a opacidade à porta, para que se meneie no lutuoso desprendimento das forças mortas que projetam um manto lúgubre sobre o dia constante. Em vez das armas que sujeitam o tempo a um paradeiro incerto, as imagens são processadas sob a intendência de uma voz sem sono, como se fosse preciso todo o tempo disponível para desalfandegar o olhar das imagens que o querem colonizar. 

O fermento das imagens pode ser ilegalizado. Os poderes não toleram gente tão diligente, gente tão, afinal, instruída. Os cortesãos amputados dizem adeus aos faraós que prometem malvasia e iguarias distinguidas (um eufemismo do ardil). Os poderes temem os que tomaram o fermento das imagens: não há melhor sindicância a que se possam sujeitar. E isso é o pior que (lhes) pode acontecer. 

29.3.24

Os insuspeitos

Explosions in the Sky, “The Fight”, in https://www.youtube.com/watch?v=SxE8prkgKBM

Os coiotes andavam por perto. Podiam ser embaixadores das desgraças que nunca se desalinham do porvir. Os coiotes são como médicos legistas que se afundam nas carcaças que perderam a vida. As pessoas desavisadas não sabem do paradeiro dos coiotes. Não sabem que há abismos precoces a tingir a malha das vidas, algumas vezes interrompendo-as prematuramente. 

Numa horta da cidade, o galinheiro foi profanado. Uma carnificina. O chão embebido em sangue, os corpos estropiados das aves, uma impressão de caos estacionada no lugar, como se um desdeus amnésico tivesse desarrumado todos os haveres – como se aquele fosse um bilhete postal do apocalipse. O homem reformado que explora a horta faz contas à vida. Não é o prejuízo que o incomoda. Está perturbado pela violência, por ter empilhado os corpos estropiados das galinhas e dos galos. Protesta contra a injustiça que desprotege as vítimas. O velho culpa os coiotes que, diz-se, andam nas proximidades.

Não há notícia de os coiotes se aproximarem das cidades. Diz-se que o estio forçado teve consequências no ecossistema e os coiotes ficaram à míngua de pequenos mamíferos, que foram morrendo de fome ou de doença. Em estado de necessidade, os coiotes começaram a perder o medo de entrar nos limites urbanos: onde há pessoas, há outros animais que são comidos pelas pessoas. Sempre à noite, que os coiotes ouviram dizer que à noite quase todos estão a dormir. 

Até à data, ninguém viu um coiote nas ruas da cidade a altas horas da noite. Alguns animais de criação têm morrido e as acusações apontam para os coiotes: “só podem ser os coiotes”. A intuição sobrepõe-se às provas, que não existem. Já há brigadas prontas a organizar a montaria aos coiotes. Eles são insuspeitos de não terem cometido todas as carnificinas anotadas nos registos da polícia.

As pessoas não escondem os laivos de selvajaria prévios à sua domesticação através da vida coletiva. Na altura do desespero, quando a desorientação se oferece como leme, as pessoas atropelam o que aprenderam nas escolas e alinham pelo esquecimento – alinham pela boçalidade própria de quem age sem parar para pensar primeiro. Não é preciso recolher provas. À falta delas, deixa-se a intuição falar sozinha. A justiça não tem de esperar pela demora dos tribunais. Mas a intuição nunca foi o forte dos Homens.

Agora, são os homens urbanos que invadem o habitat dos coiotes. Montaram-lhes uma caçada. Tal como não avistaram coiotes na cidade, não conseguiram ver nenhum coiote nas matas limítrofes. Os coiotes são insuspeitos de depositarem um grama de confiança na espécie humana. Já os Homens continuam a ser suspeitos de outras barbaridades. E são incorrigíveis (as barbaridades e os Homens que se inebriam ao cometê-las).

28.3.24

Salivar o suor desperdiçado

Hania Rani, “F Major”, in https://www.youtube.com/watch?v=bB34_eLCLKo

O boémio esperneia a noite sem fronteiras que se filiou no seu corpo. Descontente com a indiferença do dia, dedica as noites à destravada itinerância. Descontente com o dia, dedicou-se à noite.  

Não tolera zeros e ascetas, sacerdotes de variadas linhagens e fanáticos, dos fieis aos disfarçados. Prefere a frivolidade de uma emoção desgarrada; a tinta garrida que se atira ao ar, mesmo sabendo que será atingido por uns salpicos; a música, seja ela qual for, se for para interromper o silêncio indigente dos que proclamam a noite como um santuário do remanso; a decadência abertamente declarada à encenação meticulosamente esterilizada. Enquanto quase todos dormem, o boémio atravessa as ruas da cidade e vai deixando as ruas molhadas, como se tivesse colhido toda essa água do rio e lavasse as ruas que esperam pela multidão da manhã consecutiva. 

É tanta a sede de contradição que o boémio abandona a função quando as primeiras almas saem do exílio noturno. Não exatamente às primeiras almas: é preciso que o bulício já tenha tingido as ruas, para as pessoas bem formadas olharem para ele em sinal de reprovação. Só para ver os embaixadores dos bons costumes a acenarem com a cabeça enquanto desviam o olhar depois de o terem medido de cima a baixo. E ele, de propósito, simula uma embriaguez. De propósito, exibe o ar descuidado, andrajoso, para os penhores da moral se autossatisfazerem com a literacia da higiene e do ar apessoado com que se deslocam para os escritórios.

O boémio sai de cena a tempo de não ver um punhado de misérias circunstancialmente quotidianas  (o sal formatado pelo bolor indiscreto). As mães que levam os petizes ao colégio, tratando a descendência por “você” – um código de conduta que é um dicionário infalível de pertença social. Jornalistas com a notícia devidamente encomendada, jurando, sob jura de se sentirem ultrajados, a independência todavia apenas protocolar. Gente estulta que trata a empregada do café como criada, omitindo o “por favor” quando concluem o pedido. Jovens estroinas a caminho da escola, linguajando um dialeto que lança âncora no frequente erro gramatical, em comandita com calças descaídas que deixam à mostra restos não declarados de roupa interior. Senhoras que olham pelo canto do olho para o rapaz escultural que entrou na paragem anterior, debitando interiores fantasias impronunciáveis que traduzem lascívia reprimida (que as mães de família se querem cordatamente amansadas e vacinadas contra devaneios).

Sai de cena, o boémio, no tempo certo. O suor desperdiçado começava a ser salivado, tantas as misérias que embarcaram no teleférico a caminho do céu distante. Dorme, enquanto as maravilhosas pessoas de bem, catedrais impecavelmente góticas de virtudes, laboram.

27.3.24

Talvez se diga do futuro que entrou na estalagem do passado

Death in Vegas, “Dirge”, in https://www.youtube.com/watch?v=F5nzwqj3utY

O degelo: o aquecimento não tolera a permanência do degelo, condenando-o a esvair-se em pequenas gotículas de água que se desprendem e avançam pelo chão limítrofe. O que dantes era paisagem preenchida pela alvura deixa à mostra o seu estado habitual, um prado verdejante que recebe as árvores alinhadas esparsamente nos campos baldios. 

O degelo é a prova que o passado também se compõe de futuro. Não havia degelo se o futuro não o tivesse candidatado a ser a imagem formulada do passado. Só nos lugares onde as neves são eternas o degelo não é feito de futuro. É presente perene, para confirmar que as neves são eternas. Fora destes lugares, o degelo é a aproximação ao futuro antes de ter acontecido. A neve acamada só espera que o futuro dite o inexorável degelo.

O futuro pode ser cúmplice do passado, entrando antes do tempo na estalagem onde o passado se congemina. Não são as profecias agastadas pela errância que desenraízam o futuro imerso no passado. É a lógica dos acontecimentos que se esperam com elevada probabilidade e que autorizam a adivinhação do futuro. Sendo um futuro previsível, pertence ao passado antes de o ser. Um nevão evapora-se quando o ar aquece, ou quando a precipitação líquida cai em cima da neve, dissolvendo-a na mesma água que a derrotou. Todo o futuro tem um passado promissor.

Estima-se que todo o futuro será transfigurado em passado assim que o seu tempo foi emoldurado nos arquivos à mercê da memória. Eis outra razão para tirar legitimidade ao futuro: ele é imprevisível, e só as falsas profecias, as que não suportam a fragilidade da sua capacidade intuitiva, é que podem manter a predileção pela adivinhação do que não é adivinhável; e quando o futuro se cumpre, torna-se imediatamente passado.

As profecias deviam ser todas sobre o passado. Todas estariam certas e os profetas não andavam a esconder a mágoa de quem erra por sistema acerca da modalidade em que se traduz o futuro. Os profetas não se deviam acanhar perante o passado. Só tinham de aprender que o futuro regressa sempre à forma de passado.

26.3.24

Matéria avulsa

Yard Act ft. Katy J. Pearson, “When the Laughter Stops”, in https://www.youtube.com/watch?v=qFUUhgnclNo

“Pensar é uma actividade que se assemelha a pescar à linha. É preciso ter paciência, esperar, até que alguma ideia morda.”

Paulo Tunhas, in Observador, 11.03.21.

I

A formação das nuvens: conspiram os ventos com o dorso do dia para as mutações das nuvens. Às vezes, vemo-las nas suas metamorfoses, ateadas pelo vento voraz e pelas forças insondáveis que nelas se congeminam. Amadurecem. Ou vão a favor do vento, quando o vento se apressa a chegar a outros lugares e desembacia o horizonte, agora averbado pelo céu despejado de nuvens.

II

O leigo aprecia as cartas meteorológicas, uma coreografia de linhas que se estende do Atlântico às terras continentais. Aprecia a estética das linhas isobáricas, sem perceber o que elas significam. A arte é isso mesmo. A liberdade de ver arte num objeto sem ter de explicar o feixe de significados que falam através do objeto.

III

A violência não devia fazer parte dos compêndios. Com uma exceção: usar a violência para destronar os que se montam nas arcadas da violência gratuita e à sua conta exercem poder. Violência, só para subjugar a violência sem freio que se abate sobre os que forem, ao acaso ou não, as suas vítimas. Fazer engolir a violência quando obras de arte são os meios dos algozes que querem chamar a atenção para outras causas sem relação com a arte. Sem ponta de vingança, obrigando os algozes a provarem do seu veneno. 

IV

Tudo é algoritmos. A inteligência está em vias de desumanização – ou de ser colocada num lugar subalterno, atirada toda a glória para cima da inteligência artificial. Ninguém se preocupa com a agência. Nem com a diligência que nos convida à letargia. Entreguemo-nos nas delícias de uma inteligência que pensa por nós. Não nos admiremos de estarmos a caminho de uma colonização dolosa. De uma colonização sem retrocesso. 

V

Não sei se à conta da preguiça, ou de ser mais confortável encontrar procuradores em nosso nome, ou se é apenas a indolência fatal que não ecoa o hedonismo que compõe o mapa do tempo presente; não sei se são marés contaminadas de disfarces e indulgências que povoam tudo de cores garridas; ou se os tempos caminham para a absolvição das quimeras que se sobrepõem ao pensamento: temos tudo a temer, um mar de sombras que expropria a liberdade de ser, os vultos inominados algemados ao leme que vai no sentido do precipício.

VI

O pensamento bateu em retirada. Cansou-se de ser insultado. Refugiou-se nas ameais de castelos decadentes, envergonhado da castração. Sobretudo envergonhado daqueles que capitularam.

25.3.24

Dar corda aos pedais

Radiohead, “The Thief”, in https://www.youtube.com/watch?v=YmQ4gkdC6EI

Vinha aí a maré má. Os heróis faziam peito. Os pobres não sabiam que podiam ser despedaçados pela maré mortífera. Insistiam na heroicidade estulta: se eles não fossem heróis, a maré ia ceifar mais inocentes. Os heróis eram os procuradores dos inocentes. Viciados em indigência ao quadrado, os heróis de pacotilha nem sabiam que o número de vítimas era independente de haver um punhado de heróis a receber, em primeira mão, as ondas assassinas.

Os que tinham os pés assentes em terra firme que cuidassem da vidinha. Já que estavam assentes em terra firme, antes pegar neles e zarpar para um lugar antípoda onde a maré má não conseguisse ancorar. No momento de dar corda aos pedais, nem todos teriam bicicletas disponíveis (a desproporção entre habitantes e velocípedes ainda era grande – e os turistas tinham de ser somados para se ativar a equação). Alguns motins irromperam entre os menos-cidadãos que só queriam tratar da sua isolada vidinha e não hesitavam em condenar à morte os que conseguissem apear das bicicletas recrutadas para a fuga.

Este era um mal que não apoquentava os que não sabiam andar de bicicleta. Teriam de dar à perna, na falta de pedais a concurso. Mover-se-iam com o vagar do passo ainda que acelerado. Os que davam ao pedal tinham mais hipóteses de se salvarem da maré má.

Na desordem instalada, até as forças da ordem seriam extintas das ruas. Todos ficavam entregues à sua diligência, talvez ao acaso. Por essa altura, já os heróis tinham deixado de o ser, engolidos pela voragem da maré malévola. 

Mas, afinal, tinha sido falso alarme. No observatório das marés (os peritos não gostavam da palavra marégrafo – e os peritos tinham um terrível mau gosto), os cálculos a favor da maré má foram feitos depois de almoço. Erraram por excesso. Tinham dado muita corda ao álcool. No próprio dia, o ministro da tutela pôs uns patins aos peritos que causaram tanto alarme infundamentado. Ao menos, os heróis ainda estavam presentes. Lamentando-se, contudo, por não poderem provar que eram heróis.

22.3.24

Pandora não tem culpa da Torre de Babel

Cocteau Twins, “Sigur Hiccup”, in https://www.youtube.com/watch?v=-qco-GgmTQ4

Pandora amarrotou um papel – era um poema de Petrarca. Ela não sabia quem era Petrarca. O poeta, com a ajuda do sindicato respetivo (que não era presidido pelo bardo do regime, entretanto reformado), não se conformava. Agitou-se na sepultura e os ossos recuperaram das cinzas do século XIV para vociferarem um protesto, lavrado com a solenidade exigível no parlamento dos poetas.

Pandora não era sensível à poesia. E aos filósofos. Já se enamorara por um filósofo e por um poeta e não guardava boas memórias dessas experiências. Pandora, mais dada às impressões materializáveis, não entendia a abstração do filósofo e a constelação de figuras de estilo e de palavras intermediárias do poeta. Não eram amantes de que guardava boas impressões. 

Pandora, mulher moderna e sem tergiversações perante o compêndio de bons costumes a que as mulheres devem obedecer, entrou numa torre feita de complexidade. Não se intimidou. Entregou-se à demanda, sabendo que os labirintos costumam ser fortes que restringem a liberdade. A sua coragem estava documentada. Ai de quem a menosprezasse por ser mulher desempoeirada: apoderava-se das suas melhores armas e o efeito nos marialvas era devastador. Alguns pressentiam que era uma amazona exilada dos tempos distantes.

No labirinto, Pandora tropeçou em vultos da cultura. Deviam ser vultos da cultura, que ela estava vacinada contra eles pelas razões expostas. Mas aquela era uma torre que alojava cultura. Na portaria do labirinto, o nome de batismo dardejava, ameaçativo, sobre os visitantes: “Torre de Babel”. Pandora não adivinhava que tinha entrado num ciclópico inventariar de cultura, como se este fosse o museu de todos os museus, o antro da humanidade. Errou vagarosamente pelos corredores apertados do labirinto. Sentiu um feixe contínuo a invadir o seu corpo, como se todos os vultos ali residentes tomassem uma parte da sua carne para a contagiarem com conhecimento. Era como se Pandora  bebesse de um cálice de um vinho quimérico. Não ouvia vozes. O silêncio matricial insinuava-se nos poros de Pandora, que estava cansada e ao mesmo tempo preenchida, como se aquele dia equivalesse a uma vida inteira. 

À saída da Torre de Babel, Pandora trazia uma caixa. Oferta dos procuradores da torre. Ainda hoje conserva a caixa fechada. Uma diligência que terá salvado Pandora da decadência.

21.3.24

Teoria dos espelhos (confissões)

Mogway, “Midnight Flit”, in https://www.youtube.com/watch?v=_4IkTL3P_pc

Escrevo. Escrevo como se os dedos pedissem toda a água reservada nos mares e as palavras subissem a palco sem urdiduras, sem serem forçadas a emergir. Assim elas, apenas palavras.

Escrevo sem ser sobre escombros, sem procurar quimeras ou cais salvíficos. Escrevo como se do sangue ficassem tatuadas as páginas em frases imunes ao bolor, em páginas que não sobram nas bibliotecas. Escrevo sem saber de cor a cor dos milagres. Inventando personagens e montando os palcos a que elas sobem. Escrevo para congeminar a audiência que contempla os palcos.

Escrevo: sem fundamento, sem roteiro, sem às vezes saber, um par de minutos antes, sobre o que vou escrever. Escrevo e essa é uma terapia contra as enormidades bolçadas pelo mundo exterior. Escrevo sem esconderijo. Sem pseudónimos, sem forjar alteridades que se tutelam em múltiplos tentáculos. Escrevo sem temer a contradição. Sem fugir da incoerência. Escrevo porque sei de todas as fragilidades que habilitam a imperfeição. Escrevo para dar a voz a essas impurezas.

Escrevo à hora que for. Não há hora certa para escrever – todas as horas em que a escrita é convocada são horas certas para a escrita. Escrevo para domar o tempo. Para deixar que as palavras devolvam a autenticidade prévia à escrita. Escrevo onde for. Já me desabituei da escrita manual, da escrita elegante que traz a caução artesanal que mergulha em tempos arcanos. Deixei de acusar a caligrafia como marca registada.

Escrevo quando estou trespassado pela solidão. Numa carruagem do comboio, se tenho companhia no lugar do lado, reduzo o tamanho da página para 75%, o ardil para me refugiar numa solidão todavia encenada. Só no auge da solidão é que o pensamento se ordena, as palavras são arrancadas às paredes que as petrificavam, o assunto é desalfandegado da inércia. 

Escrevo para descobrir os fortes que me acolhem à margem do mundo puído, dando-me muralhas contra ele. Escrevo para arrefecer o sangue sobressaltado que pressinto a transbordar. Escrevo para esconjurar as sombras que se abatem sobre o quotidiano, à falta de não conseguir omitir as notícias que fazem a História do dia. Escrevo para disfarçar as personagens, para coabitar nas palavras avalizadas, para ser domado pelas palavras que depois se emancipam na sua ordem espontânea. Escrevo para descobrir labirintos sem rédea.

Escrevo sem saber se sou escritor. Escrevo sem saber se quero ser escritor. E continuo a escrever. Para saber ler a liberdade.

20.3.24

Ano zero

Tricky ft. Tirzah, “Sun Down”, in https://www.youtube.com/watch?v=aig0YH61CDQ

Erram os que anulam o zero enquanto algarismo. O zero tem a sua força matemática. Pode conter uma força ausente nos números que se emanciparam do zero. É o que dizem, entre gurus das almas e peticionários de peregrinações interiores: “é preciso começar do zero”. 

No concurso de metáforas, a ideia vem substituída pela imagem de uma folha em branco. E ali está a folha, não se sabe se em estado de ansiedade ou em pura indiferença, quer saber que agressões vão ser cometidas quando o lápis empunhado descer sobre a folha, pronta para ver a sua alva virgindade destronada. A folha em branco olha para quem se propõe inaugurá-la, como este olha para a folha em branco à espera da inspiração de uma ideia, do sortilégio de umas palavras que desembolsem o recomeço. São dois estranhos e estão em vias de deixar de o ser quando o lápis verter a sua tirania sobre a folha, já não em branco. Se dizem que os recomeços são sempre heurísticos, eleve-se a folha em branco, ou o zero inspirador, à categoria de património imaterial da humanidade.

 Por isso o zero, quando é (re)começo, vale mais do que os números que o sucedem. Sem zero não há os números demais. Por mais que os distraídos jurem que o zero não pertence à sua epistemologia – pois dirão, com a convicção de quem segura categóricas certezas, “eu começo a contar do um”, destinando o zero à nulidade convencionada – aqueles instantes que precedem uma contagem algébrica são o lugar ocupado pelo zero.

O zero não rima com a longa noite deserta em que nada acontece. E mesmo que queiram que a noite seja o cometa agarrado a um zero, é a noite que precede a manhã em que tudo se renova. O zero pode ser o instante que precede o momento fundacional, a página em branco que vem antes da página um, o ano zero que corresponde ao calibrar necessário depois de uma rotura. 

Depois do deserto, os espíritos que pedem a água da redenção não se mortificam no adiamento da angústia. Enchem-se de coragem e prometem o ano zero, prometem ir às fundações e remexer o magma para o trazer à tona. Só depois de decantar o magma é que se podem alimentar do vazio vasto que se oferece na forma de um zero qualquer. Mais tarde, quando as pessoas emolduram o seu pessoal resgate, tendem a omitir a força genesíaca do zero.  Mergulham na desmemória ou medram na ingratidão, os que assim obliteram o zero. 

O zero merecia melhor sorte.

19.3.24

Dicionário da invisibilidade

The Chemical Brothers, “Get Yourself High”, in https://www.youtube.com/watch?v=cYXI344Siew

O que se abotoa na indiferença é a melhor dádiva. Ao contrário dos sequazes que ambicionam palcos cheios de olhares ávidos, o anonimato é uma bênção que dispensa deuses. 

A boca cristalina toma o poder das palavras restritas. Poucos são os que as ouvem, os que as leem. O desapego ajusta a madurez que dispensa o aval dos outros. Se muitas vezes nem o aval interior é conseguido, o aval dos outros é uma procuração indesejável. É como os aspirantes a deixarem o nome na toponímia: conforta-os a ideia de o nome ficar imortalizado numa rua, mas já não estão entre as testemunhas da proeza. 

As homenagens servidas depois da morte são marcadas a destempo. Já as homenagens feitas em vida parecem um epitáfio contumaz, como se o homenageado (ou alguém que funciona como comissário da homenagem em seu nome) precisasse de atestar a homenagem em vida. Se não fosse a ambição sem medida, se um módico de invisibilidade fosse o mapa das intenções, não seriam atraiçoados por homenagens risíveis, próprias dos que já não figuram entre os vivos. Se em vez da vaidade interior fossem colonizados por uma humildade redentora, estes profetas de si mesmos não ocupavam o tempo a alargar os domínios da sua visibilidade. Precisam de palco como se fosse oxigénio. Desamadurecem. Encolhem-se numa concha que é proporcionalmente inversa à dimensão a que aspiram. Pisam o chão lodoso da angústia de cada vez que esbarram na frustração da invisibilidade. 

O incentivo de ser invisível é saber que o chamamento da visibilidade ateia a angústia. Deixam-se os palcos intrínsecos da angústia atuar por si mesmos, sem juntar outros, gratuitos, palcos escusados. Andar pela rua a esbarrar em rostos que se nos dirigem denunciando o não anonimato ocupa a liberdade. 

É melhor trazer o dicionário da invisibilidade à distância da mão, só para o caso de ser preciso exorcizar demónios que acenam com holofotes todavia párias. Para, na posse do dicionário da invisibilidade, tomar conta da bússola que confere o norte da mirífica irrelevância.