Nine Inch Nails, “The Big Come Down” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=m9b7K1D2z74
“There is no place I can go
there is no way I can hide.”
Isto não é sobre a luta de classes, nem sobre os malefícios do capitalismo que embusteiam as pessoas e, ato contínuo, as empenham numa embriaguez consumista.
Ainda faltam dezanove dias. Mas já é como se o Natal fosse amanhã. As iluminações de rua selam o convite indispensável para as pessoas se lembrarem de que o Natal é consumismo. Há dias, um jornal noticiava o “desespero” (as aspas não são por acaso) dos comerciantes de uma certa localidade porque as autoridades municipais demoravam a ligar as iluminações natalícias. Os comerciantes lá saberão, eles é que estão por dentro do ramo. Mas este “desespero” dos comerciantes soa a um exagero psicológico, ou então faz parte da sua própria campanha de sedução dos clientes, como se eles se esquecessem de que, dentro de dias, chega o Natal e as pessoas trocam as indispensáveis lembranças entre si. Oxalá houvesse cientistas prontos a demonstrar, com o auxílio de métodos contrafactuais, que o consumo natalício não encolhe na ausência das iluminações típicas da época.
As crianças andam excitadas, nota-se. Felizes delas, que ainda vivem a ilusão do Natal segundo os cânones bem industriados das empresas que sobem as vendas à boleia do Natal. Felizes delas, ou não: os que evocam a pureza do Natal, na sua simbologia religiosa, lamentam que até as crianças sejam sacrificadas na pira onde a vertigem consumista é ateada desde tenra idade. As crianças estão de olho nos artefactos prometidos pelos pais, avós, tios, padrinhos e demais familiares. Deve ser tão grande a deceção do dia vinte e cinco, depois de desembrulhadas todas as prendas, e a utilidade das prendas vai-se esgotando à mesma velocidade estonteante com que, já na idade adulta, essas crianças então grandes hão de viver as vidas. A vertigem do Natal é o bilhete ilustrado do que serão as suas vidas adultas.
Às vezes, penso sobre a organização do Natal, sobre os usos e costumes estabelecidos, a sua simbologia. Não são só os mais novos que vivem anestesiados pela profusão de luzes coloridas que avalizam o feitiço da época especial. Não são os mais novos os únicos a cair no logro do Natal. Os mais velhos também fingem. Amortecem divergências porque está consagrado que o Natal é a festa da família. Têm de conviver em família mesmo quando é uma imensa fonte de desprazer. Fingem, portanto. Em harmonia com o significado mais profundo do Natal, em que tudo é fingimento, em que, por uns dias, tudo à volta se enfeita de disfarces que talvez ajudem a suspender os tempos normais, já de si tumultuosos demais para serem suportados nos outros trezentos e sessenta e quatro dias do ano. O resultado é um paradoxo ao maximizar as dores de viver de acordo com as pautas estabelecidas.
Os que se propuserem a dissidir são encaixados na categoria de pária. São reprovados pelos que preferem a desarte do fingimento. Ai de quem fuja dos costumes instituídos, dos indeclináveis deveres da celebração em família, que sobre eles se abate todo o opróbrio do mundo. Serão os que estão no topo da misantropia por adesão sazonal.
Enquanto escrevo, sentado a beber um café, passa sem cessar um medley de músicas típicas de Natal. Ainda tenho vontade de ser mais dissidente do Natal do que antes. Este texto teria existido na mesma se o medley de músicas de Natal não tivesse invadido o café.
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