Portishead, “SOS”, in https://www.youtube.com/watch?v=QSmxdqvwxEM
“There’s no cost to sleep in
and you showed me
who I was running from.”
Estação de comboio: também permeável à colonização do consumismo, povoada por um punhado de cartazes que selam o triunfo da publicidade.
(Os gurus acreditam que, sem publicidade, o consumo fica aquém do desejado, pois os consumidores têm de ser constantemente alertados da existência dos produtos que, de outro modo, não comprariam. Ou então, é só para os gurus da especialidade convencerem os capitalistas que estão cobertos de razão, um artifício para justificarem o salário e para fazerem prova de vida.)
Uma empresa de eletrodomésticos apossou-se do rosto de um famoso humorista. Dizem que foi pago a peso de ouro.
(Sabendo-se o valor da onça de ouro nos mercados e de uma estimativa de peso do comediante, depressa se chegaria à conclusão de que ele vale mais do que a cotação internacional do ouro. Não quero saber do estipêndio do humorista, nem das acusações de incoerência por o comediante gravitar na órbita da esquerda, já ter votado nos comunistas e, mesmo assim, se inebriar pelo vil metal e não recusar índices exteriores de algum consumo de luxo. Assim como assim, o humorista tem o mesmo direito do comum dos mortais de fazer pela vida. Tem o mesmo direito de todos nós, o de sermos, ou aspirarmos a ser, burgueses.)
O que me impressiona ultrapassa todos esses fait divers. Não consigo ter noção das vezes em que o rosto do comediante aparece de norte a sul, do litoral ao interior, e nas ilhas. Não se pode dizer que um rosto assim seja privado: enquanto figura pública, já perdeu o direito ao anonimato; enquanto figura pública que empresta o rosto a uma campanha de publicidade, o rosto pertence ao espaço público onde essa publicidade acontece. Emancipou-se da pessoa.
Não consigo imaginar os danos que esta vulgarização de um rosto pode causar. Já um rosto público perde a avença da privacidade por rapidamente descoberto pelos transeuntes; pior é o estatuto de um rosto que se desmultiplica dezenas, centenas, milhares – eu lá sei quantas – de vezes em diferentes cartazes publicitários em lugares diversos. A regalia do anonimato já estava perdida; com a vulgarização do rosto em praças, avenidas, estações de comboio e metro, postos de abastecimento de combustível, jornais e televisões, e onde mais o cartaz com o rosto do comediante tenha sido afixado, o seu rosto foi nacionalizado. Já não é mais seu. Habilita-se a reinterpretações que dependem do estado de espírito e da diligência dos candidatos às artes que vierem adulterar o cartaz.
Não deve ser confortável saber que num só dia, o seu rosto é visto — e com a proximidade proporcionada pelo tamanho gigantesco do rosto em sua versão comercial — por milhares ou, talvez, centenas de milhares de pessoas. A menos que o dinheiro embolsado conte mais do que tudo o resto.
Mas isso não é da nossa conta.
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