“O feminismo faz muito sentido num mundo onde persiste a violência contra as mulheres”, Ana Vicente, in Público de 06.03.06.
Encantador, o feminismo radical que escorre nas palavras atormentadas de militantes empenhadas. O mundo continua a ser um pequeno casulo onde tudo se divide em dois grupos, como se houvesse apenas o preto e o branco. São os homens, todos, e as mulheres – oprimidas, vítimas de desigualdades inaceitáveis, vítimas da História da humanidade. O feminismo radical (poderei ousar acoplar o artigo definido masculino ao substantivo sem ser acusado de perpetuar a sociedade patriarcal em que vivemos?) não se consegue desprender do passado, transportando as suas feridas para o presente. O feminismo impede a cicatrização dessas feridas. Luta com denodo para que essas cicatrizes permaneçam abertas nos dias que correm. Se elas cicatrizassem, o feminismo pétreo passava à categoria do arqueológico.
O tempo armazenado é um lamentável cortejo de indignidades que vitimaram as mulheres. Envergonho-me da infindável série de atentados sobre a dignidade da mulher. Contudo, só me posso envergonhar pela estreiteza de vistas dos antepassados; não posso é ser responsabilizado por esses erros. Como é possível estender as consequências dos erros passados para o presente, através de uma mágica passerelle que é o legado dos erros idos que as gerações vivas são forçadas a pagar?
A retórica do feminismo radical é composta por um interminável mergulho no passado, vasculhando as desigualdades que se abatiam sobre o sexo feminino para logo depois serem atiradas à cara dos homens de hoje – como se os homens de hoje tivessem responsabilidade por actos cometidos quando nem sequer eram nascidos. O artigo de opinião que dá mote ao texto de hoje anuncia logo ao que vem nas primeiras palavras. No elogio póstumo a uma grande feminista portuguesa (Madalena Barbosa), a autora dá conta de uma conversa com um primo, juiz reformado, que lhe perguntou quem tinha sido Madalena Barbosa. Para chocar as consciências (a começar pela do primo desinformado), esclarece que quando o primo se fez juiz, e durante uma parte substancial da sua carreira, “as mulheres, qual criação subalterna e imperfeita, não o podiam fazer. Tinham, porém, o direito de ser julgadas e condenadas por homens”.
Eis a prova perfeita da dicotomia reducionista do feminismo radical: um mundo só composto pelos pólos opostos, os homens que podiam ser juízes e as mulheres a quem era reservado lugar no banco dos réus, por eles julgadas. É aceitável que assim o tenha sido durante tanto tempo? Vivendo em 2008, não hesito em dizer que não. Mas é isso que interessa avaliar, ou antes perceber o contexto no seu tempo (e não no conforto da evolução entretanto registada)? Às feministas radicais não é agradável o exercício de localização contextual que exige a compreensão do tempo em que os acontecimentos se deram. É mais conveniente ajuizar o tempo passado pela chancela do tempo presente, sem perceber o alçapão em que se metem. Uma militância que ou desconhece ou evita e epistemologia, incapaz de admitir que as sociedades evoluem. E que, na sua evolução, há museus que justamente assinalam os acidentes que mancham a História da humanidade. Sem necessidade de perpetuar os acontecimentos, prolongando-os do passado até ao presente.
Haverá desigualdades que ainda aborrecem as feministas radicais. Haverá ainda muitos homens que continuam a achar que as mulheres devem estar à frente do fogão ou oferecer-se como escravas sexuais aos seus senhores. Pergunto-me: e não têm esses comportamentos vergonhosos diminuído com a passagem do tempo? Devem todos os homens arcar com o opróbrio que fere a dignidade dos ignorantes exemplares masculinos que vivem na idade das trevas e maltratam mulheres? Não perceberão estas feministas exaltadas que estão a tomar a árvore pela floresta?
De facto, a violência sobre as mulheres – como qualquer violência, se me é permitido adicionar – é intolerável. Qualifica quem a pratica. E, de facto também, em homenagem à lógica da igualdade (e tanto haveria a interrogar a esta lógica…), apetece perguntar se não há lugar à inauguração de um movimento “masculinista”, pois os homens também são vítimas da violência. Porventura esse seja o erro de método: teimar no feminismo, ignorando que são os acidentes da biologia que nos fazem homens ou mulheres. E que, ao contrário do que acreditam piamente as feministas, o mundo não é um lugar pequenino reduzido ao preto e branco que desfila diante dos seus olhos. Os dois sexos não são categorias homogéneas, onde forçosamente todos os exemplares de cada sexo se devam abrigar, sob pena de ostracismo por dissidência. É assim que nascem os odiosos totalitarismos.
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