17.6.19

Corredor de fundo


Joy Division, “I Remember Nothing”, in https://www.youtube.com/watch?v=YYo6jfIxtao
Há oito anos: entrevistou os rapazes da banda na primeira vez que deram um concerto no país. Notou o à-vontade dos músicos, ainda aprendentes, ainda arroteando um caminho que não sabiam se haveria. (No imenso viveiro das bandas pop-rock-indie, a larga maioria fica pelo caminho e das demais sabe-se apenas pouco.) O vocalista confessou que não se sentia à vontade quando aparecia diante da audiência. Refugiava-se no vinho. Segundo ele, o vinho desamarrava as peias que medravam na sua incorrigível timidez. O resto, mais pareceu uma conversa de bons amigos. Depois da entrevista, ficou combinado que os músicos e o jornalista iam pela noite fora, sob os auspícios do segundo, que seria cicerone. 
Oito anos depois: a banda ganhou nome no mercado internacional. Nome e, faz-se constar, fama e dinheiro. Os músicos estavam de regresso para um concerto. O jornalista foi escalado para uma entrevista e para escrever sobre o concerto. Usou os contactos pessoais trocados há oito anos. Os telefonemas não eram devolvidos. Os emails ficavam sem resposta. Deu o benefício da dúvida: os “rapazes” estão muito atarefados, entre os vários concertos e as viagens de terra em terra, de país em país, que intercalam dois concertos. Não atribuiu importância ao silêncio. Há oito anos, após o concerto inesquecível, a noite de que foi cicerone foi formidável. Ficaram amigos para a vida, não cessava de dizer, nos meses seguintes, aos do seu círculo mais próximo.
No dia do concerto, o jornalista foi ao hotel onde estavam hospedados os músicos. Os músicos eram os mesmos. (Muitas vezes, as bandas pop-rock-indierefazem-se, entre saídas e entradas de músicos, apalavrando zangas ou apenas divergências artísticas ou estéticas.) Há oito anos, ficaram num hotel de três estrelas e tiveram direito ao jantar, pago pelo promotor do concerto, num restaurante mediano. Desta vez, o hotel era de cinco estrelas e, soube o jornalista, os músicos fizeram exigências entre o banal, o risível e o extravagante. Seriam as alcavalas da fama entretanto creditada. 
O jornalista chegou à receção e, depois de se identificar, pediu para entrar em contacto com o vocalista. Do outro lado respondeu uma voz entre o ensonado e o snob. Ao início, o músico deu a impressão de não se lembrar do nome do jornalista. Este fez questão de lhe avivar a memória com a noite memorável de há oito anos. Depois de alguma hesitação, o músico anuiu em descer ao bar do hotel. Demorou quase cinquenta minutos a fazê-lo. Comprovadamente, não se lembrava do rosto (e muito menos do nome) do jornalista com quem partilhou uma noite de boémia há oito anos. O jornalista, para evitar a humilhação, esquivou-se a recordar o acontecido. Limitou-se ao papel profissional, debitando mecanicamente um rol de perguntas preordenadas. Foi uma entrevista rápida. O enfado do músico não era incentivo para conversa demorada.
As despedidas foram frias. O jornalista nem sequer desejou um bom concerto. E só iria ao concerto porque foi escalado pelo jornal. À saída do hotel, disse de si para si mesmo, em surdina: “estes famosos que são atraiçoados pelo vedetismo...não sabem como a fama é efémera.” E, como se estivesse a dirigir-se ao músico, rematou, vítima da sua tremenda ingenuidade e do orgulho ferido pelo não reconhecimento: “aposto que cairás no esquecimento daqui a uns anos, quando a tua banda desaparecer dos palcos. E eu continuarei por aqui, a ser jornalista cultural. É a diferença entre um vaidoso e um corredor de fundo”. 

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