14.6.19

E ao antepenúltimo dia de primavera, criou um grupo clandestino para boicotar os guarda-chuvas que boicotavam a chuva


Jambinai, “Small Consolation, “in https://www.youtube.com/watch?v=9GRb7kRN1q8
Que canseira – alvitrou, enquanto suava pelas estopinhas sob o sol tardio e, ainda assim, prontuário de uma canícula que era um presságio. Faltavam três dias para o verão. Aquele calor abrasador era mais propício ao epicentro do verão, mas era para as pessoas se irem habituando. O verão tem uma única virtude – alinhavou em pensamento: são aqueles raros dias de chuva, após uma série quase interminável de dias soalheiros e de uma temperatura de ananases. Essa chuva que tempera os excessos do verão e que liberta um aroma sensual que provém da terra ressequida. E a terra parece agradecer com esse aroma prodigioso, por ter sido distinguida com a chuva.
O suor continuava a inundar o corpo e, por arrastamento, a roupa. Passou por uma loja de recordações, daquelas lojas em cada vez maior número, ou não fosse a cidade um expoente do turismo (para gáudio do presidente da câmara). À porta da loja, em absoluto exercício paradoxal, um amontoado de guarda-chuvas, numa constelação de cores em sinal do cosmopolitismo excessivo que tomara conta da cidade. Estava-se nas tintas para as hordas de turistas e para a ideia de cosmopolitismo excessivo e para a discussão sobre a prodigalidade do turismo. Fixou os guarda-chuvas com um olhar colérico. Estavam a destoar, como se fossem a plausível provocação para alguém, como ele, que se sentia torturado com tanto calor. Mas a provocação maior levou-o a escrever, em letras garrafais, um lembrete no caderno que andava sempre consigo: “NÃO ESQUECER DE FORMAR UM GRUPO DE BOICOTE AOS GUARDA-CHUVAS QUE BOICOTAM A CHUVA”.
Não perdeu tempo. Conhecia outros como ele, que, se pudessem, se exilavam durante a estação estival para latitudes onde fosse garantida temperatura moderada e alguma chuva. Partilhou a sua indignação e perguntou se estavam interessados em partir para a ação direta. A formação do grupo, imperativamente clandestino, só faria sentido se passassem dos protestos à ação. Seria necessário formar brigadas que inventariassem os lugares onde são comercializados guarda-chuvas. E, ato contínuo, amordaçar os funcionários das lojas e consumar a destruição dos guarda-chuvas.
Para nada ser ao acaso, esboçaram um plano de contingência, caso fossem presos em plena função. Se fossem levados a tribunal, invocariam em sua defesa que o boicote era uma repristinação antecipada de outro, e mais importante, boicote: o boicote da chuva, perpetrado pelos guarda-chuvas. Seriam levados a instar a Academia de Letras a repensar o nome do objeto, pois o objeto não guarda a chuva, limita-se a impedir que as pessoas sejam consagradas pelo dom sublime que é saberem-se encharcadas por uma chuvada. Em sua defesa, como argumento de última instância, trariam à colação o crime de lesa-pátria que é a chuva rejeitada pelos guarda-chuvas: toda a chuva neles retida assassina a imagem poética que vem do aroma libertado pela terra descarnada quando recebe as primeiras gotas de chuva. Haveria de haver um juiz com sensibilidade poética.

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