4.6.19

Sempre


Interpol, “The Heinrich Maneuver”, in https://www.youtube.com/watch?v=U8XlOI0JZm0
Tenho medo do chão corroído, de meter os pés à confiança pela ponte fora e a meio as tábuas estilhaçarem sem pré-aviso. Tenho medo de precipícios e da lua cheia, apesar de saber que não há causalidade entre ambos. Tenho medo de comida fora de prazo e de intempestivas gastroenterites. Tenho medo de a manhã não chegar e ficar refém de uma noite tumultuosa e perene. Tenho medo de ficar amarrado a uma pétrea teia de aranha, à mercê de um vulto implacável. Tenho medo do terrorismo contra a gramática e a sintaxe.
Enquanto confessava as fragilidades, pensava na palavra “sempre”. “Estamos todos a dizê-la a toda a hora. Estamos sempre a dizer “sempre” como a antítese do “nunca” que também se oferece à boca com uma frequência que ultrapassa o recomendável.” E que importância tem o sempre – e o nunca? Talvez fossem apenas desmedidas, sem importância. Vocábulos que servem de recurso estilístico, a porta aberta para o exagero de uma ideia, como se a ideia precisasse de uma impostura para que se lhe dê a atenção que o tutor da ideia julga que ela é credora. 
Não me importuna a definitividade do sempre. Sobrepõe-se ao sempre a sua efemeridade. Um sempre é sempre até ser desmentido por um acontecimento que lhe dissolve a definitividade. Não há grande mal em povoar frases com “sempre”. A efemeridade de tudo cuida de recusar o sempre como imorredoiro. O sempre é um sempre até ser hipotecado por uma circunstância inspetiva que o desautoriza. O arrependimento tem esta serventia: cuida de aplacar o sempre que se arvora em intemporal, sendo seu cuidador na hora em que é esconjurado.
O sempre é uma força de expressão que perde toda a força quando se desliga da expressão. Só quem se ilude com a definitividade das coisas é que atribui importância ao sempre. Não são as juras que o abonam. Não são as orações que convocam as divindades que o precatam. Os atos, as palavras empenhadas na sua funda franqueza, a confiança em que as fragilidades não são sinal de decaimento, os gestos que penhoram um significado que ultrapassa as prolixas palavras, é que cuidam de entronizar um momento na sua paradoxal efémera intemporalidade. Porque esses instantes são capturados e metidos dentro de uma moldura que delimita a memória. Enquanto a memória for penhor da identidade, esses instantes têm o aval da intemporalidade. Esgotaram-se no tempo que foi sua pertença, mas perduram na memória desmaterializada. 
É quando o sempre faz sentido. Não é o sempre virado para o futuro. É o sempre que perpetua o passado na orla granítica da memória. Como caução do futuro que está por vir.

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