Imploding Stars, “Birth”, in https://www.youtube.com/watch?v=70uuA7X5uAc
- Que horas são? Não sei. Não quero saber do paradeiro das horas. Não sabes que o tempo é uma adversidade para a vida? Não sabes que o tempo abrevia a medida que nos separa da morte? Como podemos consagrar o tempo se ele obedece a esta propriedade, como se fosse o perene algoz que nos empenha ao efémero? Talvez se o cultivares no avesso das suas medianas costuras; se, em vez de ser o diapasão de uma subtração, for a medida de uma soma e se, através dessa soma, se estimar a prodigiosa vida que em seu dorso levita.
Um dia, alguém me disse: “a vida é uma demorada apneia”. Discordei imediatamente. Uma apneia simboliza a resistência contra um elemento exterior, a necessária suspensão da respiração como condição para a sobrevivência. Viver não se pode limitar a ser sobrevivência. Se o for, é uma capitulação. Agonia disfarçada de vida. A forma ideal de sucumbir às contrariedades que se oferecem como litania que arrefece o mister da existência. Discordei imediatamente: até porque se há algo que a vida nunca é, é uma demora. Nem para os nonagenários. E por ser uma brevidade é que ela exige que se procure conhecer o seu tutano.
Não conhecia a pessoa que me confidenciou, entre duas garfadas num jantar cerimonioso, que a vida é uma “demorada apneia”. Não retive os traços do rosto, nem me lembro de mais nada que tenha dito, nem do nome. Não voltei a ver aquele homem. Não pude deixar de interiorizar a frase, dita com uma angústia indisfarçável. Às vezes, tenho medo de encontrar pessoas que parecem derrotadas pela própria vida. É como se lutassem contra a vida e apenas estivessem à espera que a morte seja um arrebatamento misericordioso. Tenho medo, não por temer que o rosto macerado pela capitulação seja contagioso; julgo saber dar conta do que intuo ser a necessária proteção contra estes contratempos, que não chegam a coincidir com o vocábulo. Tenho medo porque me inquieta saber da existência de existências consumidas por um fogo permanente, de vidas que desistiram de o ser. Não que seja propenso a olhar com cuidado para as vidas outras; e não que isto signifique uma dose de comiseração que traz ao conhecimento uma angústia por osmose, pois não consigo saber o que é sentir as dores dos outros, nem a impossível multiplicação do tempo seria caução suficiente para ajuizar a melancolia dos outros.
É por isso que trato de escapar à convivência com os derrotados pela vida. Não quererem saber aprender com a vida é um desígnio que esvazia a sua vida de significado. Não consigo perceber como pode alguém torturar-se persistentemente desta forma. Sinto o desassossego a acidular a boca. Não travei conhecimento com o que motiva este desaprender da vida, o desapego que traz o precipício da morte para tão perto. Pode haver fundamento – a perda, o desamor, a infelicidade, contratempos que pesam na balança que afere a luminosidade que se empresta a uma vida (ou a falta dela). Nada se consegue sobrepor à dádiva que é viver. Por mais que sejam férteis os ingredientes da angústia, eles não conseguem pesar mais do que o tão simples ato que é viver, com tudo o que viver deixa de gigantescas possibilidades de aprendizagem.
A vida é um ato permanente de aprendizagem (o contrário de uma demorada apneia). Quem recusar a humildade da aprendizagem, já pouco conta no balancete das vidas que se jogam no xadrez contínuo. Faz figura de corpo presente.
- Percebes agora da estultícia de querer estar sempre a saber que horas são? Queres saber quanto tempo te falta para a morte, ou do crédito do tempo que tens para cuidar da vida como uma homenagem à vida que faz dela credora?
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