6.6.19

Jogar às escondidas


Neneh Cherry, “Kong”, in https://www.youtube.com/watch?v=W6ivBXh1zGQ
Era a tarde vagarosa, em seu lento desaguar no ocaso. As mesas da esplanada pareciam o leito da displicência. Até os pássaros tinham hibernado, eles que ao entardecer se reativam na demanda por alimento e na coreografia dos namoros. Talvez houvesse quem jurasse que tudo se adiava para um dia posterior – e nada seria perdido por dentro do adiamento. As escadas paradas rimavam com a flanela deitada para o armário da roupa de inverno, agora que a primavera tardia finalmente se aconchegava no regaço do verão. A pele ficava mais à mostra.
Todavia, as pessoas escondiam-se. Umas das outras. Escondiam-se, acima de tudo, de si mesmas. Não amplificavam a sua existência através de uma lente desproporcionada. Pelo contrário. Refugiavam-se numa modéstia inusual. Viam-se de tamanho pequeno, mais pequeno do que a imagem desenhada pelos espelhos que se soerguiam ao olhar. Jogavam às escondidas, num processo que se multiplicava em diferentes camadas. Primeiro, escondiam-se de si mesmas. Depois, reproduziam o processo ao serem exiladas diante de todas as outras pessoas. A geografia ficava deserta de pessoas, tanta a azáfama em todos jogarem às escondidas de todos.
O relógio da catedral não caucionava estes fingimentos. Metodicamente, as sincopadas batidas dos sinos anunciavam a hora certa. As pessoas podiam fingir, entregando-se a um teatral jogo das escondidas, como se precisassem de um lúdico, infantil momento para ocultarem as dores excruciantes que as sobressaltavam. Mas esse era um fingimento que não podia ter uma densa camada de verniz. Ao menor chamamento das contrariedades, sopesava a farsa com o choque frontal com o diuturno rosto do dia. O indesmentível acometimento repudiava outros jogos florais, o arremedo de hibernação como pretexto para embaciar as de si baças lentes que transmitem a cores o lado desprezível da existência. Quem se entregava a este jogo estava convencido que era heteróclito, um pária.
E nem assim as pessoas enfraqueciam o jogo das escondidas. Aproveitavam ao máximo as telas adornadas que desfilavam diante do pensamento, enquanto se entregavam ao jogo. Não falavam. Nem consigo mesmas. Vogavam no interior de nuvens densamente acasteladas, onde sabiam ter um refúgio que as protegia dos contratempos, das maresias malditas, dos vultos prostrados, da miopia que se entretece no dorso da exemplar erudição atirada ao rosto dos que são tidos como beócios (pelos putativos eruditos). Era uma utopia. Um sonho por dentro do sonho que se debatia num canto da memória, sem um sono a condizer. 
Era um jogo que não tinha ganhador à partida.

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