Trentemøller, “Sleeper”, in https://www.youtube.com/watch?v=aBpptzB9qEA
A vexato quaestio: seria capaz de ser o escritor fantasma de mim mesmo? – perguntou-se.
Não seria sobre transversalidade de personagens, ou sobre a multiplicação de personagens que nidificam no mesmo eu. Seria diferente: partir de um texto e sair do eu que o escreveu para o reescrever de acordo com as coordenadas que seriam pertença de uma transfiguração do eu. De um eu diferente do eu-ponto de partida, o outro-eu. No final, comparar os dois textos. Possivelmente, cerzi-los nas diferenças, onde fosse possível arrumar as arestas para os textos se encaixarem. Mais importante: sublinhar, a tinta fosforescente, as diferenças sem conciliação. Não tentar perceber o que dera origem a esse fosso. Anotá-lo. Simplesmente.
Tarefa segunda: embebido no outro-eu que se emancipou do eu-ponto de partida, esboçar um texto desde uma folha em branco. Um tema qualquer – o primeiro que viesse ao bornal. Partir de um pressuposto: o outro-eu habita nos antípodas do eu-ponto de partida. Seja lá o que isso signifique. A mundovisão alternativa serve para rasurar as omissões admitidas no eu-ponto de partida. Talvez, uma farsa: as ideias, ou muitas delas, vogam na antítese das que são património genético do eu-ponto de partida. (Desde que o eu-ponto de partida fosse capaz de as identificar, sob pena de se tornar mais complexa a tarefa do eu-outro.) Ato contínuo, o texto assim formulado seria apresentado à grelha de análise do eu-ponto de partida. Ser-lhe-ia exposto o desafio da reescrita, usando a sua grelha de análise. Para surpresa de todos os envolvidos, o eu-ponto de partida não seria capaz de expor posição diametralmente oposta. Seriam de pormenor as diferenças, estilísticas e não sobre a substância.
De regresso à tarefa primeira, ao eu-ponto de partida seria pedido para reler e, se necessário, rever, o primeiro dos textos (aquele que foi apresentado à apreciação do outro-eu, tendo sido por este profusamente modificado). O eu-ponto de partida rejeitaria a paternidade desse texto. Alegaria não se rever no texto; nem na substância, nem no estilo. Correspondendo a outro desafio formulado, o eu-ponto de partida atirar-se-ia à revisão do texto. Hesitaria, ao início: consideraria serem muito díspares as suas condições analíticas e as que emergiam do texto que agora passava sob o seu olhar. Derrotadas as hesitações, conseguiria reescrever o texto. Seria quase igual ao texto que tivera sido reescrito pelo outro-eu. As diferenças seriam de pormenor.
O escritor fantasma de si mesmo era um logro. Não podia dele ser fantasma por com ele comungar a mesma grelha de análise. Só faltava saber quem era o original e a imitação. Os dois concordariam em acertar os termos do acordo, dispensando-se de responder ao pleito.
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