Morphine, “Thursday”, in https://www.youtube.com/watch?v=gyYQYmgTrrI
A luz dispersava-se sobre a sala, enquanto na televisão uma entertainerfalava como se estivesse na feira. Os homens estavam calados, na inversa proporção da vozearia que, desde a televisão, inundava a sala. Estavam calados, mas sem darem atenção ao furibundo, estrepitoso “espetáculo” que tomava conta da televisão e, por arrastamento, da sala. (Um deles obrigou que a palavra fosse grafada, por distanciamento higiénico do que não queria que estivesse a passar na televisão.) Olhavam para os copos de conhaque, como se nas suas profundezas se tivesse alojado um enigma que emprestava ânimo ao entardecer. Continuavam calados e, cada um deles, imerso numa miríade de palavras que desfilava velozmente sobre o pensamento. Com imagens retiradas da memória a entrecortarem o pensamento transbordado.
Um deles pediu mais um conhaque. O seu copo estava vazio. Com o copo vazio, era como se o fértil campo de palavras se extinguisse e o pensamento ficava deserto. Era preciso mais conhaque. Outro companheiro, e a seguir outro, imitaram-no. Romperam o silêncio para pedirem ao balcão o último conhaque da tarde, antes de se despedirem uns dos outros com um “até amanhã” – seguido de pausa lancinante –“, se Deus quiser.” Enfatizavam a segunda parte da alocução. Com medo, a boca subitamente secando-se quando todos diziam, angustiados, “se Deus quiser”. Sabiam porquê. Todos tinham ido a funerais de mais nos últimos tempos. Os da sua idade, e até alguns mais novos, tinham partido. Era melhor pedir mais outro conhaque.
Um deles atirou, inopinadamente: “homessa, a juventude tem a mania de intercalar ‘tipo’ entre duas palavras”. Os outros não tiraram os olhos das funduras dos copos, uns meios vazios, outros ainda cheios, um deles já quase vazio. O silêncio demorou-se, tornando-o excruciante para quem deu à ignição ao novo tema de conversa. Eles falavam de tudo um pouco. Eram entendidos de tudo um pouco. Mas ninguém parecia saber da nova semântica que, de acordo com o reformado que lançara o assunto, lesa o idioma. Só algum tempo depois, já o assunto parecia ter abortado à nascença, outro reformado acrescentou-se à conversa: “não te importunes. Em cada geração há modismos na língua. Mudam através dos tempos. Não podemos dizer que os modismos de hoje são um abastardamento do idioma.”
Os copos estavam quase vazios. Uma jovem entrou no bar. Estava aflita, uma graça mal anunciada das necessidades fisiológicas. Perguntou: “onde é, tipo, a casa-de-banho, tipo?” Os reformados que ali faziam tertúlia todos os dias (exceto domingos e feriados) olharam uns para os outros. Um deles, o que tentara explorar a nova semântica da juventude, respondeu com um gesto, o braço indicando o caminho da casa-de-banho. Depois de a jovem entrar sem mais demoras, ele atirou: “estão a ver o que eu dizia?” E outro, indiferente e mais interessado nas efabulações caucionadas pelo último copo de conhaque, cortou a direito: “vamos pedir o último copo de conhaque da tarde, que isso é que importa.”
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