20.6.19

O marégrafo dos corpos (short stories #124)

Stereossauro ft. Gisela João, “Vento”, in https://www.youtube.com/watch?v=0wOh5mdfoUk
          O sangue alto invade as veias e o tumulto toma o corpo de assalto, em fruição absoluta. Os corpos, em sua combustão, transidos como só em combustão podem estar, dão-se à maré. Fazem eles próprios uma maré. Uma caudalosa maré. Não cabem dentro do leito que as convenções mandaram ser o atilho dos corpos. É melhor que seja assim. Insubmissos, rebeldes, marginais quando se antepõem as regras – é melhor que os corpos sejam assim. Uma autoridade tutelar considerou a hipótese de construir um marégrafo, uma rede de marégrafos, para domar a rebeldia dos corpos. Não era uma autoridade eclesiástica, o que confere mais estranheza à ingerência de engenharia social. Dir-se-ia que as autoridades são competentes, mas só no ato da contumácia do desejo, uma coorte de frígidas e impotentes. São ardilosamente, escandalosamente, beatamente contrárias ao eflúvio onde se ateia o desejo dos corpos que atuam como seus mandantes. Ninguém obedeceu. Nem quando as autoridades, num risível remoçar da autoridade (para fazerem jus ao nome), quiseram sancionar pesadamente as infrações quando sinalizadas pela rede de marégrafos. Não conseguiram. Os corpos transbordaram de tal arte que os marégrafos perderam o norte. Esgotou-se-lhes a tinta, tantos os movimentos sísmicos que anotavam, a toda a hora, intensamente. O marégrafo dos corpos limitava-se a conferir a maré brava que era emulsão dos corpos ferventes. As autoridades, perdidas no lúgubre, meão estalão da sua incompetência, foram julgadas à revelia pelos corpos que se incensavam na combustão insubmissa. O marégrafo, a rede de marégrafos, avariou. Não foi capaz de responder à maré bruta, à maré-viva, que durante dias ameaçou levar o aquecimento global para níveis nunca vistos. Os corpos ensinaram que não toleram peias. As autoridades, tributárias de anacrónicas seitas pagãs, deviam ter aprendido com a história e o descaminho das religiões que se escandalizam com o desejo. As camisas-de-forças que intimidam o desejo não são boas conselheiras. Acabam por aprisionar quem queria ser algoz dos corpos alheios. 

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