Arcade Fire, “The Suburbs”, in https://www.youtube.com/watch?v=5Euj9f3gdyM
Alguém assobia. Uma daquelas cançonetas irritantes, que se cola à memória como uma pessoa maçadora, com conversa que tem tanto de prolífica como de desinteressante, e que acerta no tempo e no lugar em que há coincidência. Alguém assobia, andando de trás para a frente na sala de espera. Não levanto o rosto. Não quero ver o rosto da pessoa que, por assobiar tão irritante cançoneta, deve quadrar a sua personalidade com aquele adjetivo. Posso estar errado. Uma cançoneta sibilada não diz nada sobre um estranho. Ilidem-se raras vezes as conclusões precipitadas que medram nos frágeis sinais enviados. São os preconceitos a fazer dano no julgamento. Não é que seja importante tecer a pauta do julgamento. Os outros não interessam. Até que passem a interessar, o que acontece numa interação, ou quando o outro passa a ser pessoa constante. O estranho continua a assobiar a mesma cançoneta, como se ela não tivesse fim, ou como se estivesse a ser repetida à exaustão e o estranho apenas conhecesse esta cançoneta. O meu rosto continua fixo num ponto imaginário que gravita no chão, para distrair o pensamento com pensamentos outros que desviem a atenção da cançoneta. A certa altura, no intervalo (breve, contudo) entre a última assobiadela e a que se lhe viria a suceder, sou eu próprio que dou comigo refém do contágio da cançoneta. Apetece-me saltar do lugar e encher o estranho com a violência que está à boca do vulcão que sou, pronto a entrar em erupção. Reprimo a ira. O estranho não tem culpa que eu considere a cançoneta tão irritante ao ponto de quase me levar à descompostura. Levanto-me e saio da sala de espera – assim como assim, já aguardo vez há quase uma hora, não será a ausência de uns minutos que fará perder o lugar. O olhar cruza-se fugazmente com o rosto do estranho que voltou a ciciar a cançoneta. Um rosto comum, uma pessoa comum, sem traços distintivos. Ao passar pelo homem já sexagenário, não consigo reprimir um trejeito de respiração denotativa de alguma ira. Inutilmente. O homem não saberá do meu estado iracundo e não terá interpretado o trejeito em harmonia com o meu desconforto. Ando para trás e para a frente, no átrio contíguo à sala de espera. Regresso. Mesmo a tempo. Já chamavam pelo meu número (sim, somos números e não nomes, neste lugar) pela terceira vez. A funcionária, com a sobranceria de quem se comporta como se ela fosse a utente, advertiu-me, em tom maternal: “foi a última vez que chamei pelo seu número. Esteve quase a perder a vez. Veja lá a sorte que teve!”
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