21.6.19

O jogo em aberto (short stories #125)


PJ Harvey, “Crowded Cell”, in https://www.youtube.com/watch?v=3NSbu93HlNQ
          Um tabuleiro de xadrez. As peças expostas, já depois de algumas jogadas. Não havia rostos por perto. Parecia um jogo de fantasmas. Não era. Um dos jogadores era permanente, o dono do tabuleiro. O outro era plural. Anónimo, na sua pluralidade. O jogador a que se conhecia o rosto não conhecia o rosto (e a identidade) dos adversários. Era um jogo em aberto. Aberto a quem quisesse ser adversário do dono do tabuleiro. Este sabia que havia uma jogada quando quem movia uma peça premia o relógio que iniciava o prazo para a réplica. O dono do tabuleiro jogava contra um número indeterminado de adversários. Não sabia dizer quantas vezes ganhara e quantas vezes fora desfeiteado. Não importava. Todo o seu tempo era livre e, por todo o tempo que era livre, visitava várias vezes ao dia o tabuleiro, de cada vez que um anónimo adversário movia uma peça. A páginas tantas, começou a inventariar identidades-fantasma dos jogadores-fantasma que com ele se articulavam no jogo de xadrez em aberto. Havia jogadas que se repetiam de cada vez que ele repetia uma jogada. Variantes dessas jogadas, que eram o farol por onde se guiava para adivinhar se tinha sido o adversário A, ou B, ou C que tinha movido um bispo em resposta a um avanço da torre, ou a rainha à defesa de uma investida ousada de um cavalo (prontamente sacrificado), ou um peão a ameaçar a posição de um bispo desguarnecido. O que o dono do tabuleiro não sabia é que os adversários anónimos pressentiam que ele pressentia as suas jogadas, disfarçando movimentos para não serem apanhados num ritual que os denunciasse, sem prejudicarem o seu anonimato. Todos continuavam a ser perfeitos desconhecidos para todos. Até porque todos tinham um código de honra, que souberam honrar, que os impedia de se porem de atalaia para descobrirem a identidade dos adversários. Era um xadrez de máscaras. A metáfora perfeita da coexistência.

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