12.6.19

Herança


Jarvis Cocker, “Further Complications”, in https://www.youtube.com/watch?v=AzpxtSmEL9s
Guardo na pele a camada que vem de trás, a roupagem plúrima que investe contra a anestesia dos sentidos. Em sentindo dúvidas, festejo. Em havendo rudimentos que prescrevem as arestas das certezas, duvido. Não há nada nesta herança que corra o risco da prescrição. 
Não sei delimitar o alcance da herança. Dir-se-ia, para comodidade das convenções, que é um legado recebido – das pessoas que exerceram magistério, dos lugares que encontram lugar perene na memória, das palavras lidas e que ficaram tatuadas na ossatura, do teatro e do cinema, da música, de incisivas circunstâncias que foram parte do molde em que me cingi. Mas a herança talvez seja, também, o que deixo para memória futura. O que deixo sem contar, sem um propósito assim encenado. De mim há de sobrar um módico qualquer. Não faço da proclamação uma razão de existir: o que terá de acontecer será sem ser forjado, apenas guiado pela conjugação de circunstâncias que se jogar a favor. 
Adormeço a pensar no que hei de colher da árvore onde se aloja a herança, depois da alvorada. Sonho com isso. Muitas vezes, o sonho não é a véspera de uma confirmação. O tempo macerado após a alvorada trata de desmentir o oráculo agigantado durante o sonho. Fico a saber que o oráculo é uma farsa. (E não o são todos os oráculos?) Convenço-me da inutilidade do tirocínio dos sonhos. Eles são matéria com vontade própria. Cuidam do seu próprio vazio à medida que juntam as peças que os tornam, quase sempre, a imagem fidedigna de um palco onde o surreal se sobrepõe. Admito demitir os sonhos da medida onde cabe a herança.
Por vezes, pergunto se a herança não amordaça a vontade. A herança não se recusa; é um dado que se embebe na medula e dela não pode ser removido. Só que, por vezes, o corpo sente-se sitiado na moldura da herança. É como se procurasse correr por entre estreitos corredores, mas o espaço exíguo se insubordinasse contra a ousadia do corpo, restringindo-o. Não se pode nada contra a herança. Mais vale não lutar contra ela, porque nos encontramos a lutar contra o húmus em que medramos. Antes transformar a matéria que transborda da herança, adotá-la sem ser um remédio que aplaca a vontade contrariada. De fora de nós não somos nada. Mas o que em nós habita pode não chegar para de nós fermentar uma identidade. 
Por tudo isto, decretei, para memória futura, que não quero que ninguém seja coagido pelo que possa vir a ser entendido como a minha herança.

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