24.6.19

KISS (keep it simple, stupid)?

Davendra Bahnart, “Kantori Ongaku”, in https://www.youtube.com/watch?v=WB5Gypm4fHo
Epistemologia da escrita: a simplicidade é o mais difícil estalão de alcançar? A simplicidade corresponde à autenticidade da escrita, despida de ornamentos frívolos e fórmulas que conjeturam a complexidade como meio de exaltar o espírito elevado dos criadores?
Há quem assegure que a simplicidade é o desiderato primeiro da escrita. Os eruditos – sobretudo os que ostentam a sua garbosa condição erudita – não o admitem. A simplicidade, argumentam, é a parte fraca dos fracos, dos que desconhecem a cultura clássica e ignoram que a estética de um texto não traz a simplicidade como passaporte de mérito. Argumentam que se a simplicidade é o idioma corrente, corre-se o risco de confundir simplicidade com desconhecimento de regras mínimas sobre gramática e sintaxe, entortando o texto com as entorses de que fala popular é paradigmática.
Do lado contrário da trincheira, os que admitem que a simplicidade da escrita é a sua sublime condição. E que a simplicidade, sem se confundir com o abastardamento do idioma, é uma empreitada difícil na exata medida da escolha criteriosa de vocábulos simples, em orações curtas e de fácil entendimento. Quanto mais hermético se tornar o texto, mais difícil é a hermenêutica. Mais se expõe a diferentes entendimentos em função das diferentes grelhas de análise de quem os lê. 
Há neste raciocínio um equívoco: não se entende como a pluralidade de significações pode ferir a qualidade de um texto. E isso é independente da simplicidade ou da complexidade de um texto: ele pode conter palavras simples que, todavia, escondem múltiplas variáveis, mais ou menos ocultas, que desdobram os possíveis entendimentos do texto. Sobrepondo-se a este juízo, está a questionabilidade do axioma que advoga a superioridade dos textos simples. A metáfora da gastronomia vem à colação. Dizem: a melhor gastronomia é a que se despe de ornamentos e de criativas reconstruções; a melhor gastronomia é a tradicional, segundo os preceitos passados de geração em geração. Invocar-se-á a indiscutibilidade de um cozido à portuguesa, ou do bacalhau de consoada: nada se superioriza a pratos tão simples e, ao mesmo tempo, tão representativos da cultura popular. São imbatíveis, por mais elaborada e requintada que seja a gastronomia que se reinventa com o esmerar de sucessivas gerações de chefes de cozinha. Com a escrita acontece o mesmo.
Nada é assim tão objetivável. Há momentos em que nos apetece degustar um prato pertencente à cozinha tradicional e apreciar os métodos simples que são seu apanágio. Há outras alturas que não se recusa a reinvenção da gastronomia, com interpretações de autor a pratos tradicionais, ou com iguarias que são a emulsão da criatividade. O resto fica para o julgamento do produto final. Sem preconceitos operativos, antes de apurar o julgamento. Pois um texto passado pelo filtro da simplicidade pode ser melhor do que um texto candidato ao entendimento de eruditos, como o contrário. Os vereditos contundentes que arrumam tudo em categorias, como se fosse possível tanto hermetismo classificativo, são o ardil que industriam perigosas generalizações.
Pode haver momentos em que o texto exige simplicidade. E outros que quadra com a complexidade. Sem nenhuma garantia, em ambos os casos, de distinção ou de denegação de mérito. O estilo não se pode confundir com a substância do texto.

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