25.6.19

O último profeta


Pulp, “Common People” (live at Reading 2011), in https://www.youtube.com/watch?v=-XlCFJA3yL4
O nevoeiro corria uma cortina sobre o horizonte, o que não impedia o horizonte; o horizonte apenas emagrecera por ação do nevoeiro. Um ancião dispensava esta metáfora para se alcançar a cegueira mental do último dos profetas. Um ancião ainda mais idoso que, cego desde há décadas, continuou durante anos seguidos a ser credor da confiança dos demais. 
Era interpelado sobre as vicissitudes do mundo, os pressentimentos de tragédias, os momentos acertados para semear as colheitas, as probabilidades de derrotar uma enfermidade, a prevenção de intempéries catastróficas e outros cataclismos (físicos e da alma). Até as entidades religiosas se socorriam dele, em segredo (para não calhar em azar a desautorização eclesiástica, que podia diminuir o êxito confessional junto da comunidade). Até nas guerras o profeta era consultado. Sobre a viabilidade da vitória como pressuposto da guerra, ou sobre os efeitos estimados a partir do momento em que os líderes, com assentimento das autoridades religiosas, decidissem avançar para o pleito. Não se pode garantir que o profeta nunca tenha errado. Terão sido poucas as ocasiões; só os mais idosos tinham uma vaga recordação de um par de vezes em que os presságios do profeta não quadraram com o acontecido. Atribuíam os erros à falta de experiência, quando o profeta discerniu que tinha um dom inacessível ao comum dos mortais. Assim como assim, até os profetas passavam por um tirocínio, confirmando que não eram entidades sobre-humanas.
Ninguém sabia a idade do profeta. Teria mais de cem anos. Conseguiu manter um invejável vigor físico e mental, a prova do seu estatuto superior. Mas tudo tem o seu gasto e nem o profeta era imortal. Começou a proferir frases sem sentido, disparates que soavam ininteligíveis. Ficou acamado. Ainda acamado, já com as faculdades físicas tolhidas, continuava ativo no fervilhar das profecias. Que continuavam a acertar. Com o mirrar do corpo veio o entorpecimento da mente. O profeta deixou de conseguir falar. Ainda foi a tempo de escrever, em má caligrafia devido às mãos trémulas, um par de profecias antes de perder o juízo. A comunidade entrou em pânico. O que seria dela, agora que perdera a vantagem de conseguir adivinhar o porvir por ausência do profeta? 
Houve um herege que, desconfiando das capacidades do último profeta, lançou uma interrogação provocatória: e se o profeta fosse um falsário, e todos os demais, crentes nas suas profecias, falsários também, e as profecias não fossem profecias, mas apenas o regular dos acontecimentos para serem a expressão fidedigna das profecias alinhavadas? 
A comunidade levou algumas gerações até aprender a viver sem profeta. Perderam-se colheitas, algumas embarcações de pesca naufragaram e levaram homens para o fundo do mar, uma ou outra tempestade inesperada agravou o caos momentâneo. Mas deixou de haver tantas doenças com diagnóstico tardio e não houve uma única guerra perdida (porque nenhuma foi a guerra em que a comunidade entrou). 
Nessa altura, com a demora de algumas gerações, a comunidade passou a regular-se por uma metafísica diferente, acreditando nas suas próprias capacidades. Não precisavam de profetas. Só ficou por saber se o novo estalão metafísico era função das circunstâncias (nunca mais nasceu um profeta), ou ser era autêntico. 

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