23.9.20

Absolvição

Doves, “Broken Eyes”, in https://www.youtube.com/watch?v=pISDosb4Aes

Guardo as estrias do tempo para a moldura da memória. Não sei que chuva se promete como bálsamo; não sei que rosa frondosa desembaraça os amantes; não sei que sílabas entoadas afivelam a fala. Os hóspedes do futuro estão lá, à espera, imóveis, como imóvel está sempre o tempo vindouro visto desde a lente do agora.

Que seja seguida uma partitura, é a convocatória insistente dos que se enamoram por uma ordem emprestada à existência. Mas uma partitura não configura a improvisação. Asfixia as capacidades que teriam levedura se não houvesse um espartilho que as cerceasse. Ainda assim – insistem os devotos da ordenação – algum mapa há de ser preciso, umas pistas sobre os lugares demandáveis, outras sobre os caminhos prevenidos. Ninguém nasce com uma cartografia de cor. A prevenção nunca foi da ordem da estultícia.

Pela noite, quando os espíritos se embaciam, os reptos parecem jogos pueris, meras coincidências sem resposta. Apalavram-se as juras improcedentes. Mistura-se lucidez com os sussurros de Éolo que temperam os sonhos prematuros. O corpo arrasta-se num vagar pecaminoso. Não se exerça o meticuloso ofício semântico, não se queira escavar os meandros da palavra até o escafandro atingir a sua medula: ninguém quer saber o significado do pecaminoso, pois todos têm uma vaga ideia.

Um detetive avulso sonda as sombras da noite para saber se emergiu contaminada pela luz diurna. Diz-se que os que imprecam a noite gostavam que ela fosse a continuação do dia, só que com a luz diurna descontinuada pelo leve crepúsculo. Nunca seria noite em sentido próprio. Talvez pudessem ser encomendados ao Ártico no equinócio do Verão. Talvez no dia contínuo, não interrompido pela noite, aos fantasmas não seja autorizado o ar para respirarem e eles emigrem para lugares onde a noite derrota a teimosia do dia. Temem as sombras. Haja alguém que os sossegue: é no avesso das sombras que podem encontrar o vaso onde escondido está o segredo que rompe as angústias.

Guardo as estrias do tempo a tempo de decifrar o seu sortilégio. Um ditongo impercetível, uma sinapse interrompida por uma distração, o sufrágio dos modos arcaicos (se é que hão de persistir), uma vaga maré que mal chega a molhar o cais. Um verbo refeito na cerzidura que se hasteia a bordo do repensamento. Cobrando as dívidas de outrora ao livro das lembranças. As estrias ficam emolduradas como finos escaninhos que participam no desenho do mapa. Não será a noite volúvel, ou os mapas diligentemente dobrados, que absolvem o passado. O passado não precisa de absolvição.

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