7.9.20

A continência do poeta

Fontaines D.C., “Roy’s Tune”, in https://www.youtube.com/watch?v=3D-JYLhN5Yk

Todavia, a insubmissão. Não relevam as botas cardadas. Nem as medalhas amontoadas à lapela e o ar circunspeto de quem ombreia a severidade com a posse bélica. Insubmissão. Diz o poeta ao fardado: não te reconheço legitimidade; não te quero por perto, com o teu odor pútrido ao sangue que mandaste derramar, pútrido por mais que submetas o corpo à purificação dos banhos diários. 

A continência do poeta é a maldição dos castrenses – de todos os soldados que denegam a humanidade, eles ufanos pela maldição de que são mecenas: as vidas que não hesitam em destronar, porque foram ensinados que gente do mesmo sangue mas que se diz ter sangue diferente se desqualifica como inimiga e o diferendo exige que as mãos se metam às armas para derrotar os homens do mesmo sangue que se disfarçam de sangue diferente. O poeta levanta o verso a favor da antinomia dos exércitos que carregam aos ombros este inventário indecoroso. Esse é o seu exórdio irrecusável.

O poeta maldiz-se por ter de amaldiçoar os castrenses. A páginas tantas, está quase na posição do ateu que entretece elegantes argumentos a negar a existência de deus. O poeta exige uma purificação, uma libertação heurística, exige que o corpo percorra outros arruamentos. A continência do poeta não transige com o chão infértil por onde passaram as botas cardadas e os urros dos hodiernos hunos. 

O poeta acorda para o novo dia. Sente-se novo, como o dia. À cabeça, as formas constantes que aformoseiam o mundo – frescas, como a claridade matinal. O amor. A mulher amada. A filha e o futuro que a ela virá, no sortilégio que é conceder a indeterminação do porvir. As avenidas povoadas por tílias, com a sua sombra acolhedora, onde as mãos adestram as páginas de um livro e sente a carne crescer num caudal a preceito onde medram águas construtivas. As empreitadas pretéritas, apenas como mnemónica; e as que são exigidas pelo tempo futuro, em recusa da ociosa hibernação, uma bandeira hasteada que evoca a vida que se sente para ser vivida e não gasta em irrelevantes demandas. Porque um marco geodésico é apenas a janela que se entreabre para deixar o corpo voar mais acima. Sem deixar de ornamentar a vida como um festim, ainda que seja discreta a celebração. 

Esta é a continência do poeta. A submissão única à vida que tem o tamanho dos mares inteiros, para dela fazer (sem citar o poeta maior) um poema contínuo.


Sem comentários: