Uma imagem no jornal sobre uma coreografia que vai a palco: os corpos nus dos bailarinos entreveem-se no crepúsculo da cenografia retida pela fotografia. E imagino como seria difícil (na improvável hipótese de ter ofício de bailarino, por manifesta inaptidão) tirar as roupas e subir a palco por indicações do coreógrafo – ou, se fosse ator, e se o encenador me informasse que a meio de uma cena ter-me-ia de despojar das roupas e expor a nudez diante do público.
Dir-se-ia que são as sobras da cultura católica que nunca deixou de fazer cair a sua mão castradora, desenhando os limites do censurável na fronteira da vergonha do corpo. É o reduto da intimidade. Não andamos nus na rua, porque as leis interpretam a ousadia como um exibicionismo a que cabe a mácula de um crime. Reservamos os pedaços da intimidade para o domínio do eu. Se a partilhamos com quem aceitamos fazer a comunhão de corpos através da sexualidade que socializa esse domínio da intimidade (em pequena medida – e na medida da ou das pessoas com quem partilhamos esse reduto da intimidade), não deixa de ser do domínio da intimidade, agora já não puramente individual.
Não posso dizer que os cânones da cultura católica deixaram marcas. É o que quero acreditar, como expressão do ateísmo incondicional. Todavia, não consigo reprimir as interrogações que me percorrem interiormente, uma certa convulsão que se acentua ao denotar a contradição entre o almanaque das intenções e o (por vezes) irreprimível bastão das convenções que se abate contra a vontade que se julga cimentada pela razão. Esta vergonha do corpo, será uma herança não desejada dos vestígios de catolicismo que foram sendo deixados nas costuras do comportamento?
Regresso aos corpos nus dos bailarinos (ou aos corpos dos atores que se desnudam a meio de uma peça de teatro): talvez lhes seja mais fácil a nudez, estão em palco a sublimar a arte de atuar, o fingimento exigível a quem é ator. Não são eles, são as personagens que encarnam. Convidados a personificar outrem, não é o seu corpo nu que aparece em cena: é o corpo dessa personagem. Ou então, um corpo é apenas um corpo, uma materialização que expõe a desimportância do corpo e a insignificância da nudez. A medida não é por igual: há pessoas que lidam melhor com a sua nudez diante dos outros, e não são atores ou atrizes. Pois o corpo é apenas um corpo, reservando a parte mais importante do ser para a sua dimensão desmaterializada (não o corpo; a alma). Se dúvidas houver sobre a irrelevância do corpo, o tira-teimas é testemunhar uma autópsia: o corpo é tratado como coisa.
O corpo é apenas um corpo – leio o mote vezes e vezes, como se me estivesse a convencer que o corpo é apenas um corpo. Mas continuo a não ser capaz de ir a uma praia de nudismo.
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