A miragem desenhava-se no leve adocicar da pele. A luz tímida que se erguia sobre as muralhas do entardecer entranhava-se. O perjúrio da fala não se fazia sentir, o silêncio como um largo oceano à ilharga. Os gatos com cio passeavam no jardim. A sonora cantilena era a prova viva do cio. As nuvens díspares amontoavam-se, pressentindo o crepúsculo que não tardava. O dia fora longo e só apetecia fazer nada.
Podia a voz romper o silêncio estabelecido. Só para se ouvir, depois de ter sido gasta durante o dia. O silêncio perdurou. Era como se a voz quisesse o seu próprio silêncio. Arpoada numa tangente com a solidão instantânea, o corpo imerso num súbito torpor, o olhar fixo num ponto indeterminado, perdido na vastidão do horizonte. A voz falava apenas através de pensamentos avulsos. Decifrava-se, na pessoa desses pensamentos. Recusava prantos e preces.
De repente, a voz emancipou-se das algemas do silêncio autoimposto. Balbuciou umas palavras atiradas ao acaso. Não ficaram registadas em ata, nem sequer mental, essas palavras. Era um exercício destinado a experimentar a voz. Lobrigava as armaduras que se escondiam na véspera da voz agora empossada. Uma nítida sucessão de palavras, a voz resgatada ao silêncio militante que acompanhava, como aperitivo, o fim da tarde.
Um dia, a voz ouvira-se em reprodução (tinha sido gravada para um efeito qualquer). A voz não se reconheceu. A voz que se escuta a si mesmo parece uma voz alheia. É como se desfilasse um cortejo de vozes forasteiras e, no meio delas, aparecesse a voz inquisitiva: ela não daria conta de ser intérprete de si mesma. A voz não está habituada a ser testemunha do seu palavrar. É uma projeção para o exterior. Não guarda a memória da sua genética.
De outra vez, em voluntário exílio temporário no estrangeiro, conseguiu a voz estar três dias sem ser pronúncia. Não houve serventia de falar com estranhos, nem as funções repetitivas da rotina de um dia exigiram articulação com os outros. A voz não se esqueceu. Ao cabo dos três dias, continuava a ser a mesma. Não ficou provado que o temporário emudecimento fazia prescrever a voz. Ela mantivera todas as suas dioptrias, capaz de descrever a nitidez com que o mundo lhe aparecia em surdina.
Antes que fosse noite, a voz fez-se voz. Continuava desembaciada. Em contraste com a luz herdada do ocaso.
Sem comentários:
Enviar um comentário