15.9.20

Sermão

Morphine, “Rope on Fire”, in https://www.youtube.com/watch?v=y7cqogdo_Pc

- Se ser relógio das almas fosse ofício regular, não tinha horas de sono.

A incumbência seria levada a sério, um autêntico martírio, todavia irrecusável. 

- Não cabe a todos ser um entre o escol, um eleito. Os colossos não pertencem às ossadas dos comuns.

Não houvera vivalma a sussurrar esta metafísica condição, mas acabava os dias a ser a metonímia de si mesmo, um estendal onde vertia as angústias dos outros, coadas por seu astuto medidor.

- Ah! Quem me tira o deleite de um bom sermão – dos sermões de que sou pregador. 

Não lhe importava a sua risível condição, um ensimesmar – dir-se-ia – patológico. Perorava de forma prolixa, um discurso gongórico, ininteligível, com pose solene e estudada (ou seria estudada e solene?), dirigindo-se à audiência com o dedo espetado como se fosse o fóssil que devolve o perdão aos que precisam de indulto. Sentia-se continuamente sentado na maré alta. Seus eram os adjetivos que postulavam a linhagem de uma alma. Acordava todos os dias convencido que todos os outros lhe tributavam um respeito monárquico, como se fosse imensa a sua corte e ele o suserano à mercê de genuflexões.

Não havia jornada sem sermão. Sentenciava sobre estados de alma, a arte, a genesíaca paisagem (era um naturalista de eleição) e, no que aos estados de alma diz respeito, sobretudo dos que fossem merecedores da reprovação dos costumes enraizados. Sentia-se, de firme propósito, um tutor.

- Os predestinados têm um ónus que os simples mortais não alcançam. As obras de que somos mestres não rimam com lhaneza. Os tortuosos meandros da alma, labirintos diáfanos, não se privam das juras que os desmentem. Os predestinados não se coíbem de conferir chão sólido às ilusões que se desmembram na vacuidade. Somos como que analgésicos. Às vezes, anestesias. Seja como for, uma mão amiga, inestimavelmente amiga.

(Usava o plural majestático como disfarce da sua inane ufania, vista do avesso. Não reconhecia mais ninguém com o seu estatuto. E, contudo, não deixava de empregar o plural majestático.)

Não contava com a farsa dos espelhos. Espelhos que distorciam a imagem. Aumentativos dela. Não lhe avivassem a cal da geografia que era sua moradia: podia ser acometido por uma súbita apoplexia quando desse conta da irrelevância que é apanágio da imensa mole de que se dizia máximo tutor. E de que era, afinal, parte integrante. 

Às vezes, é preciso provar do veneno que se deita aos outros. 


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