22.9.20

Uma peça de teatro é apenas uma peça de teatro (ou talvez não apenas)

Catarina e a beleza de matar fascistas

de Tiago Rodrigues, 

Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, 20 de setembro de 2020

Mote: “Se tiverdes precisão, não hesiteis em fazer o mal para praticar o bem.” E: “Quando a ordem é injusta, a desordem é um princípio de justiça.” (Excertos da peça)

O teatro pode ser político, como tantas vezes é. Pode ser político olhando para o passado, reinterpretando-o, provavelmente emprestando-lhe uma nova grelha de leitura que medra no úbere da criação artística. Também pode ser político como pressentimento, uma certa forma de se fazer oráculo. Tiago Rodrigues combinou as duas facetas nesta peça. Mergulhou no passado da ditadura, no episódio da morte de Catarina Eufémia como ponto de partida para o enredo. Uma amiga de Catarina Eufémia não perdoou o marido, agente policial que assistiu passivamente ao assassínio de Catarina Eufémia, e tirou-lhe a vida à frente dos filhos. Aí começou uma tradição anual que esta Catarina legou aos seus sucessores, todos e todas Catarinas. Todos os anos, um fascista teria de ser morto num ritual familiar e depois enterrado sob um sobreiro, na propriedade da família. 

A ponte com o futuro tem uma conexão atual: a extrema-direita que cavalga perigosamente, seduzindo cada vez mais eleitores por todo o mundo, por toda a Europa, e também em Portugal. No seu oráculo, o encenador antecipa-se ao tempo futuro. Em 2028, o partido da extrema-direita chegou ao poder e formou governo. O ritual anual da família de Catarinas ganha um sabor diferente. É a primeira vez que um fascista vai ser morto depois de os fascistas terem chegado ao poder com a franquia da maioria dos votantes. 

O apogeu narrativo prolonga-se pela peça fora. Naquele ano, o ato iniciático de matar o fascista coube a uma Catarina que chegou aos vinte e seis anos de idade (o selo da maioridade do assassínio de fascistas, de acordo com o código de conduta destes justiceiros). A rapariga ficou paralisada pela dúvida e não conseguiu premir o gatilho. Depois de discutir com a mãe, parece convencida da beleza de que se reveste o ato de matar um fascista. Porque não pode haver hesitações no momento de fazer o mal se esse mal é a janela onde fermenta o bem. Todos os argumentos da rapariga foram anulados pela persuasão da mãe: não adianta dialogar com fascistas, nem conceder-lhes direitos que eles negam aos demais; é improcedente explicar ao povo seduzido pelos fascistas a falácia dos seus argumentos, porque os fascistas instrumentalizam o povo com falsas demandas e vieses da análise; não se pode confiar nas instituições e na democracia, porque foram a democracia e as instituições que caucionaram a chegada dos fascistas ao poder. 

Todavia, a rapariga é outra vez tomada pela hesitação. Não consegue matar o fascista. E todas as Catarinas (“todas” como recurso estilístico adotado, como se as convenções linguísticas fossem viradas do avesso e um grupo de homens e mulheres passasse a ser denominado no feminino) – todas as Catarinas são mortas sem se saber como. Sobrevive uma Catarina, o primo silencioso, possivelmente autista, possivelmente o último penhor de valores que não se reviam na barbárie das Catarinas. E sobrevive o fascista, que escapa à execução sumária. O primeiro que teve essa sorte em setenta e seis anos, depois de setenta e seis fascistas que passaram a fazer de húmus (pútrido, porventura) daquele montado alentejano. 

O fascista ergue-se, vitorioso, exsudando pesporrência. Num salto cronológico, ao fascista é garantido o apogeu num discurso aos sequazes. Um longo e extático discurso. O recurso discursivo bebe no catecismo político dos “fascistas emergentes”, leia-se, o Chega e todos os que têm sido atraídos para o “movimento”: um caldo feito de ideologização nacionalista, racismo, intolerância com as minorias étnicas, subalternização da mulher e irrelevância da violência doméstica, denúncia das elites, respeito quase religioso das forças policiais, protesto contra a corrupção endémica (imputada ao regime político decadente), intransigência com a homossexualidade, apologia do liberalismo económico (onde Rodrigues comete um equívoco), ódio à Constituição vigente. Um discurso inflamado, impetuoso, que começa com uma petição pela liberdade (o fascista acabara de se extrair ao cativeiro dos seus algozes), mas termina com a instrumentalização da liberdade – a liberdade só é válida se for coincidente com as ideias do governo em funções, com o catecismo de valores e de práticas imposto pelos fascistas.

A salvação do fascista parecia ser o epílogo. Se a peça terminasse nesse momento, teria selado a inverosimilhante justiça feita pelas mãos de uma família marcada pelas cicatrizes de uma antepassada. Num momento de coletivo descontrolo todos os predadores do fascista pereceram, menos o rapaz que terá sido o autor da carnificina familiar. Concluir-se-ia que a violência, mesmo contra os que são institucionalmente violentos, está destinada a ser letra morta. Contudo, a pose triunfal e a soberba do fascista, assim que se liberta do cativeiro, fizeram pressentir uma viragem na trama narrativa. O fascista usou o suicídio coletivo da família para se reapossar do domínio do poder. Envergou o papel de herói, esquecido o medo que o consumiu quando esteve no limiar da execução sumária.

O discurso final do fascista é a coroação da retórica nauseabunda que se conhece aos arautos da extrema-direita que despontou em Portugal. O público intervém amiúde: “cala-te!”, ou “mata-o” (impetrando ao rapaz que matou toda a família e que era espetador – distante – da verborreia acalorada do fascista). “Mata-o!”, ouviu-se muitas vezes, na súplica de vários espetadores desde o lugar errado no cenário, pois decerto não seriam a audiência da peça de oratória, destinada aos apaniguados dos fascistas. Os espetadores que saltaram para o palco sem saírem do lugar queriam que sobre o fascista caísse o destino que a família justicialista não conseguiu operar. Sobrou esta mensagem: o fascista não foi assassinado. Não foi morto quando houve oportunidade. A tempo. A beleza do ato não se consumou. O fascista pôde continuar a ser o que sabe ser: fascista. Os fascistas não merecem ser poupados à morte, porque não respeitam a vida e a liberdade. Não se convertem ao humanismo e à decência mesmo depois de passarem pelo crivo do abismo da morte. Mas tão-pouco os agentes justicialistas respeitam a liberdade. Concluo eu: é tão fascista o fascista que mata fascistas como o fascista que é morto. 

Abjuro o sebastianismo dos radicais de direita que se monta no descontentamento popular e consegue crescer na competição eleitoral. Considero abjetas as personagens que cavalgam no oportunismo e se maquilham consoante é prestável o ofício de seduzir uma turba. Tenho medo que estes párias ponham a mão no poder. Mas – e a pergunta foi mal respondida na peça – se estes párias chegarem ao governo com o consentimento da maioria dos votantes? É de aceitar a displicência que trespassa algumas das personagens da peça, que se colocam numa posição demissionária (“não adianta convencer os votantes dos fascistas”)? É de aceitar a sua arrogância ao acusarem as massas de ignorância porque ao votarem (um voto errado) consentiram na tomada de poder pelos fascistas? Tenho medo dos fascistas que se aproveitem da democracia para a distorcer, ou até (no pior dos cenários) para a liquidar. Como tenho medo dos justiceiros que se autoinvestem de poderes heurísticos para decantar a paisagem política de um país, como se fossem os agentes executores da defenestração dos que ameaçam roubar a democracia sem que alguém lhes tenha encomendado a função.

A certa altura, eu, que considero repugnante o estereótipo central da peça (o “fascista”), senti-me como o fascista que era presa da família de Catarinas. O teatro pode ser político, sem dúvida. Mas escusa de atear fogueiras antes do tempo. E escusa de ser condescendente com um justicialismo tão primário como as afeções que contaminam os fascistas. No enredo, o tio da Catarina que estava agendada para o assassínio, exerce o papel do ancião da família e desafia-a para um dilema que teria resposta predeterminada. Foi pena que o enredo não tivesse feito outra incursão pela filosofia moral para levantar estas interrogações: como justifica o “não fascista” que mata fascistas o direito de lhes tirar a vida? Que superioridade moral lhe é investida para ordenar a execução de fascistas à margem da justiça institucionalizada? E – a meu ver, a interrogação decisiva – aceitar que o “não fascista” pode matar fascistas não é equivalente ao fascista que se considera legitimado para tirar a vida aos que se lhe opõem?

Agora, é a vez do meu oráculo: por este andar, de radicalismo que se antagoniza a outro radicalismo à reação deste radicalismo, iremos no caminho de radicalismos de sinal contrário que se autoalimentam, numa interminável espiral de crispação, retórica agressiva e, possivelmente, confronto físico e morte. Não é um bom pressentimento. Que os fascistas não valorizam o outro, é consabido. Nesta peça ficou claro que os que matam fascistas também não dão valor ao outro. Também não dão valor à vida humana. Não são diferentes. São tão fascistas como eles, na sonegação de valores inerentes à convivência democrática.

A desordem nunca é um princípio de justiça: conduz à anomia. E na anomia, salvam-se os mais fortes; os que tiverem armas à sua disposição; os que ganharem, num certo momento, o monopólio da palavra.

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