14.9.20

Consentido

Sleaford Mods, “Jolly Fucker”, in https://www.youtube.com/watch?v=NyXt5dPEfeQ

Aproveite-se a generosidade do tempo, de que frui uma estação a destempo: o consentimento não precisa de notário, escreve-se no clima sem morada que destempera o Verão tardio. É como os olhares que são substitutos da fala. O consentimento não precisa de verbo para ter aval.

Neste demiúrgico pesar, as abóbadas que cercam a cidade não se importunam com as vozes que protestam contra a “heresia”. Não se chega a perceber a raiz do protesto, nem que crime hediondo terá sido cofiado para se protestar, em voz alta, “heresia”. Quem invoca uma heresia está no padecimento máximo: a heresia é o pior dos crimes. Contudo, os códigos de leis não incluem a heresia nos crimes com punição. O bramido fica órfão. Não será se não bramido, um legítimo direito ao protesto. Sem outras consequências. 

Não se partilham as ideias se elas partirem de uma imposição. É então muito provável que as divergências tomem conta do dia. São convidativas, as divergências. Se não fosse por elas, os canhestros ideólogos de um pensamento totalizante seriam os fautores de uma ingerência na esfera dos outros. Diriam que tinham legitimidade em nome do “bem comum”. Seriam eles os arquitetos do “bem comum”, e inquisidores em correspondência, sem darem conta que ajuízam em causa própria ao serem censores da “heresia” por alguém cometida. A sua urgência não merece consentimento. Se não tiverem o respaldo das leis, estão condenados a vegetar na irrelevância das suas causas. Se houver identidade com as leis dispostas, legitima-se a intrusão com a aprovação da lei. Não deixa de ser uma intrusão, pois não teve o desagravo do consentimento. Falta-lhe a legitimidade dos que se expuseram à invasão.

Quando se diz “consentimento” é porque a legitimidade se tornou um labirinto denso, com sucessivas entorses a pretexto do “bem comum” que não pode ser desautorizado. Diz-se, sem elaborar o argumentário, que a urgência da exceção justifica a legitimidade do que, de outro modo, seria uma inaceitável intrusão. Ativado o pretexto, transfigura-se a semântica que encorpa o conceito: o que dantes era ilegítimo torna-se legítimo, mesmo que não tenha havido o selo legitimador do consentimento.

Apure-se a cartografia de “consentimento”. Desmembrada nas suas duas partes, fica “com sentimento”. Nada devia ser admissível contra o sentimento daqueles a quem as ordenanças se impõem. O consentimento, como expressão máxima do sentimento do destinatário, é a chave para os enigmas. 


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