18.9.20

Mão dormente (short stories #260)

Flaming Lips, “Race for the Prize”, in https://www.youtube.com/watch?v=bs56ygZplQA&frags=pl%2Cwn

          O sol esbate-se na silhueta da muralha, esbarrando contra o dorso do entardecer. O tempo, subitamente, parece arrastar-se. Quase como se fosse uma suspensão, temporária. A mão dormente assenta na mesa da esplanada. Remexe os tendões e os músculos, à procura do sangue necessário para ser resgatada do torpor. Não é assim com o pensamento, que ferventa. Sobrepõe-se à impostura do tempo; se calhar, é a quimera do pensamento ávido que devolve a impressão do arrastamento do tempo, como se o pensamento insaciável iludisse o castigo do tempo. A mão ainda dormente esboça umas palavras na folha de papel tirada ao acaso. As palavras também são um acaso. Impetram ao labirinto da alma uma centelha de onde possam submergir da letargia imposta pelo dia que se faz ermo. A ponta da caneta saliva umas palavras avulsas que se alinham, sem ordem. Os poetas são artífices nas palavras que reinventam o seu sentido; são pródigos nas entrelinhas que cativam múltiplas leituras, deixando ao exegeta a sua liberdade. A mão parece sair da dormência à medida que as sílabas se emaranham nas linhas sem limites que emprestaram à folha de papel. As palavras contrariam o crepúsculo que se levanta vagarosamente, reificando palavras simples, puros cristais de neve que se amontoam com uma leveza como se não estivessem sujeitas à lei da gravidade. A mão já não está dormente. Por ela foram escritas palavras que a remiram do torpor. Agora a mão serve de pedestal para o queixo que, em pose contemplativa, aprecia o lento devorar da luz diurna. A mão diria à cabeça pensante que o mundo assenta neste canibalismo diário, perene. É por isso que há quem suplique que a noite se demore. A mão tem medo da noite. Tem medo que a noite a restaure como mão dormente.

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