Trago um diamante no esconderijo da boca. Não sei se é da noite, mas o sorriso baço diz-se fugitivo no lugar onde se extinguem os reinos sem estação. Talvez seja eu o fugitivo e a noite exílio inesperado. Na opacidade dos dias claros, os lábios esbracejam palavras difíceis. Saem a ferros, às vezes truncadas, mas não deixam por dizer o que querem dizer. Não é de uma alma esmaecida que se trata. Há uma plenitude que compõe o mapa onde assentam os ossos fundos. Uma tela inconfundível, a fala estreita, parcimoniosa nos adjetivos – pois a fala dispensa os ornamentos que distraem do que traz ânimo. É como se pela noite fora cavalgasse no dorso de um cavalo sem cor, os seus olhos tapados por uma venda transparente, só para fingir um olhar embaciado – só para fingir que eu conduzia o cavalo. A cegueira pode não ser do cavalo; a cegueira inventaria-se nos muitos exemplares de desarte narcísica que se esboçam como epitomes de erudição. Uma vanidade. Um logro, como uma joia perdida nas funduras de um poço, irrecuperável. No estio da memória, sangra o suor gasto entre os poros das paredes. É o próprio sentir que parece emparedado, insensível, invisível. Não suplico nada que seja um porto vago de angústia. Aprendi que o sono é o aval da paz interior. Não adianta ser hermeneuta de sonhos insondáveis, os sonhos são um pedaço de teatro sem palco que se insinua. Sem esse fingimento, sobramos nós. Essa simplicidade não aparente. Improcedentes, os exercícios arqueológicos que escavam até ao magma em demanda de outros sedimentos que caucionem um eu diferente. Não precisamos de ser um eu diferente. Não precisamos de eus diferentes. No fio indelével da noite, o olhar de um leão insinua-se na sombra do luar. Esse olhar retém as costuras do mundo. A simbiose da benevolência com que o mundo nos gratifica.
10.9.20
O leão noturno (short stories #259)
Japonica, “Through the Mountains”, in https://www.youtube.com/watch?v=mbBlx3Don5c
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