29.9.20

Onde está o limão?

Deftones, “The Spell of Mathematics”, in https://www.youtube.com/watch?v=NUyV3uklpcY

Mormente o vidro ácido que se despoja do orvalho e deixa entrar o solfejo do dia, por mais que o dia esteja tristonho – mas quem mandou às convenções apostrofar de tristonho um dia arroteado pelo nevoeiro persistente? Sabia-se ser modesta a claridade escondida, quase como se fosse a sua autêntica negação, a luz espreitando por uma fenda. Mas era a claridade possível, ainda assim a antinomia com a noite sempre medonha. O dia estava a preceito para resgatar leituras hipotecadas ao passado.

O cliente sugeriu que se acendessem os candeeiros. “A luz está fraca”, acrescentou, como se os olhares atónitos do empregado de mesa e do dono do café soassem a reprovação. Contrariado, o empregado de mesa acendeu apenas um candeeiro. “Este chega. É claridade de sobra.” O cliente não se intimidou. Continuou a beber o seu café enquanto passava a vista pelas páginas de um livro que, pelo aspeto puído, fora comprado num alfarrabista. 

O empregado de mesa percebeu que o cliente seria demorado. Já não folheava páginas avulsas do livro. Deitara-se à leitura metódica. Em sinal da demora – e talvez porque o estágio demorado no estabelecimento comercial ditava o imperativo de consumir algo mais – pediu uma tosta mista e um carioca de limão. Desta vez, o empregado de mesa foi mais prestável. Assim como assim, a manhã estava fraca (as pessoas continuavam relutantes em readquirir velhos hábitos). Era preciso fazer negócio. Se o patrão não faturasse, seria difícil arranjar meios para pagar o seu salário. Ao servir o requisitado, perguntou ao cliente:

- Se não considerar ousadia da minha parte, que livro está a ler?

O homem ficou sem reação. Não esperava que um empregado de mesa se interessasse pela literatura, e menos ainda por um livro que visivelmente tinha sido arrancado à estante de um alfarrabista.

Foi um achado que encontrei no alfarrabista, ali na esquina com a praça central. É um livro sobre a vergonha de um criminoso que sempre soube esconder os seus crimes e que, entretanto, fez carreira diplomática.

- É um livro antigo. Vê-se que já teve muito uso.

O leitor não sabia o que o empregado de mesa queria dizer. “Muito uso”, seria um livro manuseado por muitas mãos, numa contínua estafeta de donos, ou apenas de leitores, que trespassou o tempo? Ou seria um uso passivo, o natural amarelecimento das páginas por ter feito demorado estágio na madeira que bordeja as estantes de sucessivos alfarrabistas? Quis tirar a limpo:

- O que quer dizer com “muito uso”?

O empregado de mesa ficou impassível à frente do cliente, com a bandeja inerte. Ele próprio não sabia o significado do que perguntara. “Que raio”, vociferou em voz interior, arrependido de ter iniciado o diálogo como o letrado, “por que não estive calado?” Por não querer dar parte de fraco, arriscou uma resposta, hesitantemente:

Muitos olhos e muitas mãos terão gasto as páginas desse livro e com isso terão crescido com ele. Ou então, ele estava há muito tempo sem uso, a fazer companhia às térmitas das estantes de um alfarrabista. Mas isso não interessa. Está a ser agradável, a leitura do livro?

Não estava interessado em continuar a conversa. O cliente do café, autoconvencidamente letrado, pimpão no património da sua erudição, defendia no seu íntimo o que em proclamações públicas era por ele próprio desmentido: os letrados não se misturam com o povo iletrado e não há possibilidade de diálogo entre ambos. Matou a conversa, ao disparar arrogantemente:

Este carioca de limão só tem umas envergonhadas aparas de limão. Onde está o limão?

O empregado de mesa recuou, em silêncio. Apetecia-lhe trazer um limão inteiro e uma faca para o letrado depositar na bebida o limão que lhe agradasse. Apetecia-lhe atirar grosseiramente o limão e a faca para cima da mesa, bolçando, mal-educadamente, “sirva-se à vontade”. Mas os tempos não iam de feição para o negócio. Os clientes tinham de ser tratados na palma da mão. Não podia ser de outro modo. Não podia atraiçoar o patrão. Seria o mesmo que atraiçoar-se a si mesmo. 

Regressou à mesa com outro carioca de café.

Diga-me, por favor, se assim está a preceito?

- Agora sim. 

É por conta da casa. Bom proveito.

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